Mulheres, pretas e combativas


Por Júlia Pessôa

18/03/2018 às 07h00

Como qualquer pessoa com o mínimo de caráter, humanidade e empatia, a notícia da execução sumária de Marielle Franco me deixou devastada, indignada e com muito medo dos tempos muito sombrios que ainda estão por vir. Há muitas coisas que eu gostaria de dizer neste momento. A primeira é que os quatro tiros no rosto desta mulher negra, militante, vinda da periferia, lésbica, mãe e vereadora eleita hão de sair pela culatra, porque sua voz e seus ideais agora ecoam mais forte e mais alto do que nunca. Outra é que realmente fico me questionando se as pessoas estão fazendo e refazendo todos os caminhos que nos puseram neste infindável poço de merda em que o país está afundado, e que culminaram – agora, pois vem coisa pior – com o gatilho sendo puxado contra Marielle. Eu poderia dizer muitas coisas sobre a enorme desesperança que me corrói neste momento, mas não tenho este direito. Por mais que a execução de Marielle me doa e cause este efeito a qualquer pessoa minimamente decente, é sentada em uma montanha de privilégios que eu sinto estas pontadas pungentes. Protegida. Resguardada. Quem carrega literalmente na pele as mesmas lutas de Marielle é que deve ter voz para falar sobre esta atrocidade. Por isso, quem assina esta coluna hoje é a a professora Giovanna Castro: mulher, preta e combativa.

14 de março: Se viva, Carolina de Jesus faria 104 anos, idade improvável de existência principalmente quando se trata de uma mulher pobre, preta, periférica, revolucionária. Marielle jamais fará 104 anos, sequer chegará aos 44. Ela e Carolina se irmanam na mistura de angústia, medo, impotência, revolta, raiva e resistência que corre nos sangues de qualquer mulher preta nesta terra, uma terra na qual o Estado e sociedade nada mais são do que uma máquina pavorosa que se alimenta de nosso sangue e da nossa carne.

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Carolina rasgou a miséria em seus textos, Marielle a expôs em suas facetas mais perversas apontando o dedo para uma elite de postura escravocrata que ainda põe preços no valor das vidas negras, baixo valor sempre. Ao saber de sua execução, brotou em mim um misto de pavor, choro e silenciamento de quem nasceu de uma mulher preta, cresceu com tantas outras, tornou-se uma e vive cercada de outras. Pavor de reconhecer, agora de forma incontestável, que somos alvos.

A esse pavor soma-se um desespero que olha e repete incansavelmente uma imagem construída a partir das narrativas do ocorrido: assassinaram uma mulher preta, alvejaram seu corpo repetidamente, eliminaram com ela as bandeiras pelas quais lutava, calaram sua voz. A ferro e a fogo conduziram seu corpo pro quinhão de terra que consideram o único que ela possui a legitimidade de ocupar. Cada bala dirigida a ela atinge cada uma de nós. Quando Marielle tombou, ao lado de Dandara, Luiza, Carolina, Rosa, Cláudia, e tantas outras alvejadas, rasgou a cortina e desvelou um cenário velho que soa novo a olhos imprecisos: por aqui mulheres pretas combativas são assassinadas por serem mulheres, pretas e combativas, não importa onde estejam.

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