Da volta ao mundo às porradas


Por Júlia Pessôa

13/09/2015 às 07h00

Eu sei que precisava chover. Mas quando abro o jornal e vejo que as precipitações alteraram em absolutamente nada o nível dos mananciais, sinto-me (infantilmente) ludibriada pela natureza, traída, enganada. É como se chovesse só para que os dias cinzentos deixassem a gente um pouco mais triste, as calçadas mais escorregadias e os cabelos completamente indomáveis. Sem falar no trânsito. Abraçando o risco iminente de ser repetitiva, digo: uma das coisas mais doloridas que há é fazer papel de trouxa, na meteorologia e na vida. É essa sina de doar-se mais do que o outro, nadar até a ilha mais próxima para ajudar alguém e, no retorno, esperando que a mão amiga nos puxe da arrebentação, morrer na praia.

Minha mãe tem mania de dizer que filho complica “é quando aprende a dizer não”. Concordo em partes. Criança é assim mesmo, torce o nariz e cisma em dizer a palavrinha de três letras e som anasalado para roupas, banhos e comidas que antes do conhecimento do advérbio de negação eram plenamente aceitas. Mas na própria vida, e não na criação de uma prole recém-senhora de suas negativas, talvez o maior desafio seja exatamente, reaprender a dizer não, sem temores de represália ou olhares tortos. Ninguém, absolutamente ninguém, pode estar disponível o tempo todo (ou deve).

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Tenho uma dificuldade patológica em balançar a cabeça de um lado ao outro, ou meu indicador, desacreditando qualquer possibilidade de prestar um favor, fazer um agrado, “quebrar um galho”, “dar uma força”. E nem me acho uma pessoa tão generosa assim. Pode ser que eu tenha esgotado toda a minha cota de negativas quando aprendi o advérbio ainda criança e hoje minha fração seja racionada. Por outro lado, talvez isso seja reflexo de meu temor absoluto de frustrar aos que me pedem socorro, ou apenas a lógica do “não custa nada” (sic) em ação. Na maioria das vezes, custa nada mesmo. Mas tenho percebido, cada vez mais, que a contrapartida quase sempre vem cotada em dólar, por isso mesmo é muito custoso retribuir a graça.

Sei que tem essa história de que a gente deve “fazer o bem sem olhar a quem”, “ajudar as pessoas sem nada em troca” e todas essas coisas que a gente aprende em colégios católicos e mensagens de boa fé compartilhadas em imagens duvidosas no Facebook. Mas no fundo, sempre esperamos que nosso “de nada” possa ser substituído por um agradecimento futuro por uma mão que nos foi estendida. Falo sempre sobre alteridade, mas acho imprescindível também que não nos esqueçamos de nós mesmos, até para que nossas doações e benevolências com quem nos cerca não se transformem em ressentimento, amargor e, por consequência, corações calejados e endurecidos para o mundo.

Fosse eu Júlia Verne, daria a volta ao mundo em oitenta dias. Mas carrego outro sobrenome, e faço o giro em torno da Terra com meu rolo de papel de trouxa. Pessôa que sou, como o português, sigo sem nunca ter conhecido “quem tivesse levado porrada”. E seguindo a sina familiar, “Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.”

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