Estado de sítio


Por Júlia Pessôa

12/09/2021 às 07h00

Estado de sítio

Em dias de muito calor, dá uma certa saudade de ser criança. Da infância sempre à espreita da dona que vendia chup-chup no portão. “Tem de quê?” “Chocolate, maracujá, morango, coco e creme holandês.” “Quero um de creme lambês.” E voltava pra brincadeira, a criançada toda com sacolé em punho ou dependurado na boca.
Tenta se lembrar de detalhes pequenos, mas vem mais à cabeça todo o macro: joelhos sempre ralados, corpo todo sujo, andar em bando e fingir não ser criança. Ou ter medo. E saber, lá no fundinho, que era, que tinha. “Ainda bem”, pensa hoje.
Entrar no galinheiro empunhando uma ripa pra espantar as moradoras, voltar com um ou, em dias de sorte, dois ovos, e responder que sim para a avó, que sempre perguntava, como quem fiscalizasse a brincadeira: “as galinhas trabalharam direitinho hoje?”. Acenava positivamente com orgulho, como se todo o esforço – literalmente – não fosse das pobres aves.
Tinha, claro, a piscina. A meca do verão, à distância de um mergulho, que na infância é só questão de oportunidade ou companhia. Não costumava faltar um ou outro, então a vida era andar com os cabelos cheirando a cloro e os dedos enrugados. Sabia nadar desde sempre, talvez por isso nunca tenha temido o fundo ou eventual afogamento. Gostava de sentir que crescia enquanto tentava não se equilibrar no dedão para manter a cabeça fora d’água. Até o dia que a planta do pé tocou o azulejo.
O dia só acabava quando os cachorros eram soltos, a hora que fosse. Aí era toque de recolher até a manhã seguinte para todo mundo, ou quase. “Eles são bravos, só respeitam a sua avó.” Hoje sabe exatamente de onde veio sua fobia de cães. No dia seguinte repetia-se a sequência, e era tudo diferente. Nada era igual naquele tempo, naquele sítio. Era outro estado de se viver, como se o cotidiano não respondesse às mesmas regras.
Hoje nem sempre o corpo obedece como prontamente atendia nas guerras de frutas colhidas do pé: pernas que faziam ventar de tanta correria, juntas inaudíveis e a pele sempre com um tom solar que só a infância tem. (Embora muita gente passe a vida tentando alcançar) Os cabelos resistem, pouco brancos até, mas jamais suportariam o cloro de viver uma estação todinha em banho-maria. Nunca havia sequer ouvido falar em coluna naquele tempo, e agora a desinfeliz faz questão de ser lembrada a todo instante.
Abre a janela para ver se entra uma brisa amiga, esquentou, parece que o tempo vai firmar. Crianças fazem barulho lá embaixo na rua. Ou seria lembrança? Deve ser o calor.

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