Pro dia nascer feliz
Eu juro que tentei. Da hora que acordei até o último segundinho de olho aberto, eu me esforcei muito. Foi muito grande a mobilização para que eu conseguisse, confesso. Nas minhas redes sociais, em grupos de WhatsApp,em ligações, na mídia, em recados de trabalho, em manifestações de estranhos na rua. Todo mundo queria que eu tivesse êxito. Mas não deu.
Não achei a menor graça na piada de “promoção de espumantes para mulheres” mostrando uma gôndola de detergentes; pelo contrário, fiquei possessa. Também não consegui rir da montagem com a Dercy Gonçalves, dizendo que o dia era de quem tinha “perereca” (claro que com um termo mais chulo), como se o que definisse o que é ser mulher fosse a genitália. Tampouco esbocei sorriso com foto de homem pelado com flores me desejando felicidades, como se ser sexualizada e estar com um homem fosse meu único caminho para isso.
Não recebi flores – que adoro, inclusive – , mas de toda forma, não entendo ser presenteada com rosas no mesmo Calçadão em que tantos homens assediam milhares de nós na nossa passagem pro trabalho, pra casa, num passeio para olhar as vitrines, cometendo o gravíssimo delito de existirmos. Não gostei quando, em tom elogioso, ouvi de homem que a gente deixa “a vida deles mais leve”, como se nosso único papel fosse o de sermos delicadas, frágeis e decorativas, além de sempre a serviço de algum homem.
Não venha me pedir pra ser feliz se preciso ouvir, quando exponho uma opinião sobre um tema que domino, que “não, na verdade não é bem assim”, e sou constantemente interrompida por algum cara em tom professoral. Se quando expresso meus sentimentos sou tachada de louca, desequilibrada, ou “devo estar de TPM”. Se quando quero ficar em uma festa, sou “doidona” e quando quero ir embora, sou “chata”. Se uso batom de “puta”, só porque é vermelho (ou roxo, ou preto, ou marrom, ou da cor que eu quiser). Se sou obrigada a aceitar assédio porque “foi só um elogio” e se meu corpo e o de nós todas é tido como público para o toque, o julgamento e a mil formas de opressão e violência.
O sorriso não vai vir nem quando penso que estou viva e ilesa no país onde uma mulher foi agredida a cada minuto no carnaval carioca. Neste mesmo paraíso tropical em que a gente trabalha sete horas e meia por semana a mais que os homens, mesmo tendo índice de escolaridade maior, porque tarefa doméstica “é coisa de mulher”. Até o “presidente” disse, ao afirmar que seguramente a responsável pela formação dos filhos “não é o homem, é a mulher.” Estamos no quinto país do mundo com maior número de feminicídios, não tem mensagem “fofa” que reverta isso, assim como não tem chocolate que adoce o sabor amargo dos comentários que este texto certamente terá: “Feminazi”, “Mal-amada”, “Feia”, “Doida”,e por aí vai.
Reconheço que vai ficando mais difícil. Mais gente vai me achando chata, radical e grossa, porque me recuso a compactuar com piadinhas e manifestações de machismo. “Feliz Dia da Mulher” soa, aos meus ouvidos, como “Feliz Dia da Memória pelas Vítimas do Holocausto”. Tivemos conquistas importantes, mas ainda faltam incontáveis gerações noites mal-dormidas “pro dia nascer feliz”. Ainda não deu.