Profundidade de campo
Como toda aluna de comunicação, vi “Cidadão Kane”, do Orson Welles, na época, por obrigação. Na trama que narra uma saga de poder, corrupção e manipulação (não, não é uma sinopse do Brasil de 2016), Charles, o cidadão-título, ainda criança, foi arrancado de sua paupérrima família. Enquanto a decisão era forçada goela abaixo, o pequeno Kane aparece no fundo da cena, por uma janela, alheio ao fato que mudaria sua vida para sempre. Foi assim que eu aprendi, na aula de cinema, com a professora Diana, o que era profundidade de campo.
Tecnicamente, o termo diz respeito ao espaço de foco que temos em uma imagem, aquele efeito de “focar e desfocar” como recurso estético, dramático, para conduzir o olhar do espectador, enfim, um método a que se pode recorrer. Mas na minha cabeça sempre vem a imagem daquele canto no fundo do frame, onde o microcidadão Kane estava. Aquele espaço desfocado onde ele não podia interferir no que se passava em primeiríssimo plano, onde ele se esbaldava na neve enquanto sua vida ruía. Profundidade de campo.
Parei, quase por completo, de seguir os desdobramentos da política brasileira nos dias de hoje. O roteiro é ruim e sem sentido; as imagens são horrorosas e os personagens só fazem afundar a trama. (Sim, parece uma das resenhas do seriado 3% que você leu na internet.) O gênero é híbrido: tem muito de drama, passagens de absoluto terror e não raramente, reviravoltas cômicas (e, contrariando a sabedoria popular, simultaneamente trágicas). “Não dá para acompanhar”, penso. Melhor assistir Netflix.
Assisti a”Cidadão Kane” mais umas duas vezes depois da faculdade, por vontade própria. Sempre que falho com meu objetivo e insisto em conferir “qual foi a última” daquele povo de Brasília, não consigo me esquecer do pequeno Kane achando que a vida era escorregar na neve. Como o personagem-título, estamos cada vez mais relegados ao efeito da profundidade de campo: um tanto embaçados e invisíveis ao fundo, enquanto gente da pior estirpe toma, em primeiro plano, decisões que ferem nossos direitos e ameaçam nossos futuros. Eita filme ruim de se ver! O desfecho? Spoiler: não vai ter final feliz.