Vinte anos


Por Júlia Pessôa

08/08/2021 às 07h00

Sempre procurei algo que se comparasse a ela. Encontrei coisas parecidas, talvez tão agradáveis quanto, algumas quiçá melhores. Mas nada que me tenha cruzado o caminho trazia o mesmo efeito, a sensação literalmente doce de transgressão e, ao mesmo tempo, de uma grande conquista – talvez porque eu fosse pequena. Nada se comparava ao sabor da torta de brigadeiro de uma confeitaria da minha Três Rios natal.
Quando criança, uma fatia daquelas marcava quase sempre uma ocasião especial ou uma espontaneidade, já que, como agora, nos anos 1990 da minha infância comer fora era caro demais pra ser hábito. Massa fofa e molhadinha, cortada duas vezes para acomodar o farto recheio duplo de brigadeiro, que é também cobertura de pelo menos um dedo gordo salpicada de granulado. E embora meu paladar seja laico, tenho que reverenciar o chocolate usado, desconfio que aquele “do padre”, a medida certa de doçura. Como se não bastasse, um banho de uma calda quentinha finalizava o deleite.
Essa semana li uma matéria do “The Economist” dizendo que, no andar de destruição em que estamos, a vida no planeta dura, na melhor das hipóteses, mais 20 anos. Na pior, não chega a dez. É como a piada do restaurante em que a comida é ruim e ainda por cima tem porções minúsculas. Também essa semana decidiram privatizar os Correios. O torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra foi elevado ao posto de marechal pelo governo Bolsonaro. Foi arquivado o processo contra os racistas do Leblon que tentaram acusar um homem negro de roubar uma bicicleta. A variante delta vai subindo proverbiais curvas por países em que já se andava sem máscara num respiro de otimismo. Por aqui, máscara vai se tornando raridade mesmo sem qualquer respiro. E no meu microuniverso, envelheci em mais um aniversário em que saúde e paz não foram um chavão, mas desejos à distância que nunca foram tão necessários – para mim e para o mundo.
Mas também essa semana minha mãe me trouxe, com todo cuidado amparando no colo feito um bebê, a torta de brigadeiro de Três Rios. Uma camada de brigadeiro, mais foto de gente vacinada nas redes sociais. Outra camada fartíssima, o delírio sobre voto impresso foi derrubado na Câmara dos Deputados. A massa fofa e molhadinha, Bolsonaro pode pegar até 46 anos de prisão se condenado no inquérito das fake news. Cobertura generosa de brigadeiro salpicada de granulado, Juiz de Fora aplicou meio milhão de vacinas. Como se não bastasse, a calda quentinha de chocolate doce na medida certa finaliza o deleite: no meu microuniverso completei mais um ano de vida cercada de mais amor do que achei que fosse possível. Bastou a primeira provinha da torta para esquecer, ainda que só por por uns minutos, que restam, na melhor das hipóteses, 20 anos nesse planetão sem porteira. Que o padre do chocolate abençoe esta amnésia!

 

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