Cebola


Por Júlia Pessôa

02/06/2019 às 07h00

Embora eu não seja lá uma exímia cozinheira, faço uns e outros pratos de que me orgulho bastante, e que sempre rendem elogios dos quais, como boa leonina, me inflo todinha. Além disso, quando tenho tempo e vontade, realmente desfruto do ato de cozinhar, é um prazer em cada uma de suas minúcias. Um dos momentos que amo é a base de preparo para muitas coisas, um bom refogado com cebola. Adoro o cheiro de comidinha temperada que toma conta da cozinha, o “tccccccchiiii” do contato com o óleo, a gradativa mudança de coloração do transparente ao dourado – às vezes até um queimadinho intencional. Até dá para cozinhar sem cebola. Mas nunca fica a mesma coisa. Não tem a mesma cor, o mesmo cheiro, o mesmo sabor, o mesmo som. A mesma graça.

Quando se perde alguém, também a vida segue, de maneiras muito diferentes para cada uma das pessoas que sofreram tal golpe do destino, da ordem das coisas, do universo ou o que quer que seja. Mas é claro que dói. Principalmente quando se trata de alguém jovem. Principalmente quando se trata de uma das poucas pessoas, neste mundo tão cada vez mais hostil, que podiam ser claramente chamadas de unanimidade. Principalmente quando estamos falando de alguém que, não sem muita luta, começou a ver seus sonhos se realizando, num horizonte ainda cabiam infinitos. E, invariavelmente, porque a gente sempre sabe que a morte é uma partida irreversível. Mas, como disse, para quem continua por aqui, a vida segue.

PUBLICIDADE

Em uma comparação que pode ser simplista demais, beirando o esdrúxulo, é como acontece na cozinha – porque é sempre melhor usar exemplos leves para falar de dores pesadas. Como disse, até dá para cozinhar sem cebola. Alguns sentem a diferença na hora, mas acabam seguindo a refeição normalmente. Há quem prove o sabor e ache um lixo, mas coma assim mesmo sabendo que o prato não é (mais) o melhor que poderia ser. No pior dos casos, há quem, pela ausência insubstituível do ingrediente se recuse a comer. Qual é o sentido? Mas talvez o tempo e a noção de que é preciso se manter vivo e, para isso, é preciso se alimentar, faz com que seja possível seguir a refeição. Há de chegar a sobremesa, com cobertura de esperança e adicional de conforto. Há de chegar.

Dito isso, pode até ser inaptidão na cozinha de minha parte, mas segue valendo a máxima incontestável e universal de que cebola faz chorar.

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.