Festa na favela


Por Gabriel Ferreira Borges

23/04/2019 às 07h00

Mais popular do Brasil, o Clube de Regatas do Flamengo mobiliza símbolos, ritos e cânticos próprios a uma liturgia; estado de pertencimento forjado em meio às benesses e, sobretudo, mazelas cariocas modernas. Como quaisquer significados, são disputados à exaustão. Guardados, religiosamente, resistem. Deslocam-se, por vezes, a outros sentidos. As definições de ser Flamengo são, incansavelmente, ditas e não ditas. Na epopeia rubro-negra, há quem queira silenciá-los.

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Quis o futebol que Vitinho, rubro-negro desde criança, nascido e criado em Nova Brasília, favela do Complexo do Alemão, sacramentasse a festa nas favelas (Foto: Alexandre Vidal/Flamengo)

Ainda que os cânticos do Maracanã lavem as almas rubro-negras aos domingos, o Flamengo emana dos morros e dos rincões. Embora de todos, o Flamengo, aristocrático clube social da Zona Sul, foi ressignificado por símbolos populares, como o é conhecido contemporaneamente, na década de 1930, a reboque da construção do ideário nacionalista brasileiro. Da fidalguia ao operariado; da Gávea às favelas. Daí o único valor inegociável dos rubro-negros: a raça. Ardência.

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Ao menos desde a gestão Bandeira de Mello, os símbolos flamenguistas são violentados; os torcedores pretos e pobres são marginalizados. Em curso, a elitização do futebol brasileiro é eufemismo para o embranquecimento. Processo potencializado pela Copa do Mundo de 2014, diga-se. Como pontua o historiador Luiz Antonio Simas, “as novas arenas não propõem soluções para manter nos estádios espaços populares e, ao mesmo tempo, garantir o justo acesso aos que não frequentavam os jogos por diversas razões (…). Vieram para disciplinar o ato de torcer”.

Se Bandeira de Mello patrocinava preços de ingressos abusivos, a gestão Rodolfo Landim nega um dos símbolos de pertencimento mais intrínsecos aos flamenguistas. O termo “Festa na favela” – cântico apropriado pelos rubro-negros depois de criado pelos rivais como ofensa – foi vetado da “comunicação institucional” do clube. Ora, a administração, portanto, institucionalizou o racismo estrutural outrora entoado pelos adversários sob a justificativa de ser “algo associado à violência na cidade”. O Flamengo, em nota, respondeu que “um canto alegre e contagiante da torcida não necessariamente precisa ser a melhor maneira para a comunicação da instituição”.

Como resposta, neste domingo (21), os jogadores, ao entrarem em campo, no Maracanã, foram recebidos, pelos rubro-negros, com um resistente mosaico, cujos dizeres indicavam: “Festa na favela”. E, em ato final do paganismo rubro-negro, Vitinho, preto, nascido e criado em Nova Brasília, favela do Complexo do Alemão, sagrou o 35º título do Campeonato Carioca para o Flamengo. Como bem sabe o cronista rubro-negro Mario Filho, o Flamengo é o mais amado porque o Flamengo se deixa amar à vontade. Não impõe restrições a quem o ama.

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