Ensino remoto evidencia gargalos para educação inclusiva
Acessibilidade e falta de adaptação das atividades às necessidades dos alunos com deficiência são alguns dos desafios. Famílias relatam angústias em meio ao processo adotado em razão das restrições às aulas presenciais
A pandemia da Covid-19 tem criado uma lacuna no aprendizado e na socialização de estudantes com deficiência. Isso porque a necessidade do isolamento social para conter a disseminação da doença exigiu a adaptação dos estudantes ao ensino remoto, ainda pouco acessível e inclusivo. Após um ano vivendo este cenário e sem a perspectiva de quando ele termina, as famílias de alunos de Juiz de Fora relatam os desafios e as angústias em meio a este processo.
A expectativa para pais e responsáveis de crianças com deficiência era de que o ano letivo de 2021 fosse mais fácil em comparação com o anterior. No entanto, logo no início, em março, o avanço dos índices da Covid-19 inseriu Juiz de Fora na onda roxa do programa estadual Minas Consciente, o que trouxe outra dificuldade: as atividades escolares impressas da rede municipal deixaram de ser entregues, e o ensino se tornou exclusivo pela internet.
Presidente do Grupo de Apoio a Pais e Profissionais de Pessoas com Autismo (Gappa), Ariene Menezes fala sobre as dificuldades enfrentadas pelos alunos a partir da experiência vivida com o filho Crhys, de 11 anos, e do relato recebido de outras mães. “O ensino exclusivo pela internet é difícil para crianças típicas e atípicas. A maior parte delas não tem celular, e os pais precisavam do aparelho para trabalhar no horário da escola.”
No caso dos estudantes com deficiência, outros problemas vieram à tona, como a falta de acessibilidade das atividades on-line, o que reduziu o estímulo e a participação. Segundo Ariene, algumas instituições orientaram que os responsáveis fizessem a impressão em casa, mas nem todos têm condições.
Ela acrescenta que a situação também trouxe dificuldades para os professores. “Alguns não têm pacote de dados suficiente. Outros têm resistência em disponibilizar o celular pessoal para as dúvidas”, conta. “É um problema que foi intensificado durante a onda roxa, mas que vai continuar. Neste ponto, seria importante a liberação do ACVM (Ajuda de Custo e Valorização do Magistério) por parte da Prefeitura.”
A diretora do Sindicato dos Professores de Juiz de Fora (Sinpro-JF), Maria Leopoldina (Dina) Pereira, confirma as dificuldades. “A experiência do ensino remoto como um todo é um desafio. Para começar, no Brasil, a internet já não é boa e nem todos têm acesso.” Ela aponta, ainda, que 90% dos profissionais do ensino básico são mulheres. “Elas também têm filhos estudando em casa e estão sobrecarregadas com o acúmulo de funções.”
Segundo Dina, muitos professores precisaram mudar os provedores de internet durante a pandemia, mas, apesar disso, seguem limitados na elaboração das atividades. “Um vídeo de mais de quatro minutos não pode ser assistido por todos os alunos porque muitas famílias usam o celular pré-pago.”
Ela acredita que o caminho para a inclusão nesse momento seja conjugar as atividades remotas e impressas, considerando as questões de acessibilidade e as necessidades para cada criança. “É preciso que famílias e escolas caminhem juntas.”
Atividades impressas foram retomadas, diz PJF
No dia 18 de abril, a cidade voltou a seguir os protocolos da faixa vermelha do programa Juiz de Fora pela Vida, após o Estado anunciar que a Macrorregião Sudeste, na qual o município está inserido, sairia da onda roxa do Minas Consciente. Desta forma, de acordo com a assessoria da Secretaria de Educação (SE), as escolas da rede municipal foram orientadas a retornar com as atividades impressas.
Com relação ao pagamento do ACVM, a pasta informou que o recurso será liberado em junho. “Os profissionais têm essa ajuda como forma de garantir acesso a produtos que auxiliam o trabalho pedagógico, como a aquisição de chips com pacotes de dados para desenvolver o trabalho remoto, entre outros”, explicou, em nota.
A secretária municipal de educação, Nádia Ribas, informou que todos os esforços estão sendo realizados. “Não dá para pensarmos uma educação sem que todos e todas sejam acolhidos e tenham garantido o direito à aprendizagem. Tudo está sendo feito em conjunto por meio da Secretaria de Educação, dos profissionais de Atendimento Educacional Especializados (AEE), de ensino colaborativo, dos Centros de Atendimento Educacional Especializados (CAEE) e envolvendo a escola como um todo.” Ela enfatizou que mesmo numa percepção de escola como “um todo”, as particularidades dos alunos vêm sendo observadas.
Para pais, falhas na inclusão promovem retrocesso de alunos
A Tribuna ouviu um grupo de mães de alunos com deficiência, com idades entre 4 e 18 anos, que estudam em escolas públicas das redes municipal e estadual. Apesar de haver diferenças entre as faixas etárias, os tipos de deficiência, as instituições de ensino e as rotinas das famílias, a identificação de retrocessos cognitivos e comportamentais dos estudantes durante a pandemia da Covid-19 é uma unanimidade.
A mãe de um menino de 5 anos diagnosticado com autismo de grau leve diz que percebeu retrocessos no aprendizado e na socialização da criança. “Antes ele conseguia acompanhar a turma, apesar das dificuldades por conta do autismo. Mas percebi que esse ano ele regrediu. Está com mais dificuldade na escrita e, principalmente, na interação social.”
Segundo ela, o menino gostava do contato com outras crianças, mas agora não quer interagir. “Ele está mais agitado e ansioso porque fica muito em casa. Mudou o comportamento, piorou muito, infelizmente.” A expectativa é de que com a ampliação da vacina, a rotina presencial possa ser retomada. “Sabemos que no momento não há muito o que ser feito. É esperar que os profissionais e as crianças possam ser vacinadas para as aulas voltarem com segurança e a gente tentar recuperar o que foi perdido.”
A mudança de comportamento da filha de 7 anos, que tem Síndrome de Down, levou outra mãe a procurar ajuda especializada. “A pandemia tem sido muito difícil para ela, que é muito carinhosa e teve dificuldades para entender, por exemplo, que não poderia abraçar o pai quando ele chega do trabalho”, recorda. “Ela é bem sensível e sente falta de estar perto dos coleguinhas e dos professores. Com o prolongamento da situação, observei ela ficando muito amuada e tive medo de que adoecesse. Procurei ajuda médica e psicológica.”
Necessidade de suporte
As mães afirmam sentir frustração ao verificar o retrocesso dos filhos. Muitas delas dizem não ter a didática necessária para conseguir passar as lições. “Há uma falta de interesse dele por certas atividades, e eu deixo sem fazer. Alguns exercícios são bem complicados”, desabafa a mãe de um menino de 7 anos que tem autismo severo.
De acordo com outra mãe, cuja filha é uma adolescente de 18 anos diagnosticada com autismo e que também possui deficiências visual e intelectual, o ensino remoto representou uma perda significativa para a estudante. “Quando o indivíduo é autista leve, acredito que pode haver uma interação melhor nas aulas on- line e no desenvolvimento. Mas eu, particularmente, tenho encontrado dificuldades de despertar o interesse dela”, relata. “A lição não é adaptada, e a má qualidade da impressão causa dúvidas. A minha falta de habilidade em ensinar, com técnicas e recursos que o professor de apoio possui, também é um desafio.”
Ela sugere que as instituições de ensino priorizem o suporte e a acessibilidade, com “adaptações adequadas das lições para cada criança, respeitando as dificuldades de cada deficiência. O treinamento dos pais para as aulas e dicas de recursos e técnicas poderiam ajudar na hora do ensino remoto.”
Dificuldades do ensino presencial são intensificadas
A pandemia da Covid-19 evidenciou os gargalos para a realização de uma educação inclusiva, mas muitos deles já vêm sendo percebidos mesmo antes da necessidade de adaptação de pais, alunos e escolas para o ensino remoto.
A mãe de um menino autista de 4 anos e profissional da educação ressalta a necessidade de pautar o ensino na diversidade. “Tanto no ensino presencial quanto no ensino remoto são muitas as dificuldades, como a falta de formação adequada de professores à diversidade dos alunos; a ausência de materiais, recursos e equipamentos adaptados aos alunos com deficiência; e o número elevado de estudantes nas salas.”
Para ela, a educação inclusiva passa pela capacitação e valorização dos docentes, contratação de professores de apoio, diálogo com as famílias e investimentos. “A escola é um importante espaço de socialização e aprendizado para crianças com deficiência.”
‘Abandono’
No entanto, a realidade tem sido muito diferente. De acordo com informações do Gappa, em alguns casos, a situação é de abandono. A mãe de uma criança com deficiência relatou ao grupo que sequer foi informada sobre o fechamento da Escola Estadual Estevão de Oliveira, onde a criança estuda. “Ela soube pela imprensa local. É um descaso muito grande.”
Procurada pela Tribuna, a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais informou, por meio de nota, que “todos os estudantes matriculados foram encaminhados para a Escola Estadual Delfim Moreira, onde os alunos da educação especial também estão sendo atendidos”.
O texto diz, ainda, que “a Superintendência Regional de Ensino de Juiz de Fora encaminhou uma carta aos pais informando sobre a absorção dos alunos, e a escola entrou em contato com todos os transferidos.”
‘É desafiador alfabetizar e trabalhar a inclusão à distância’
Os professores da rede estadual também sentem as dificuldades impostas ao ensino pela realidade da Covid-19, conforme informações do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação em Minas Gerais (Sind-UTE/ Subsede Juiz de Fora). “A pandemia trouxe muitos prejuízos para todos, notadamente aos alunos com deficiência. É desafiador alfabetizar e trabalhar a inclusão à distância, mesmo com as ferramentas disponibilizadas pelo Governo.”
O sindicato reitera que a falta de acesso à internet por muitos alunos é outro problema, além dos aspectos emocionais do momento que vivemos. “O grande desafio é motivar todos os dias nossos alunos com a certeza de que a situação é passageira e que logo voltaremos às aulas presenciais.”
Sobre as ações de inclusão, a Secretaria de Estado de Educação declarou que “o Plano de Estudos Tutorados (PET) de cada estudante público da educação especial é adaptado de acordo com suas necessidades” e que é levado em consideração “o grau de autonomia do estudante para a execução da atividade e o recurso educacional especializado necessário para o seu desenvolvimento fora da escola.”
Ainda de acordo com o Estado, os estudantes contam com a assistência dos professores dos Atendimentos Educacionais Especializados (AEE) para adaptação do material e acompanhamento das atividades remotas.
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