Você pode me ouvir, Doutor?
Que a população idosa está crescendo no mundo inteiro, você leitor e leitora já sabem disso há muito tempo. E que essa realidade acontece também no Brasil e em nossa cidade, vocês também já sabem, porque em quase todas as crônicas semanais eu falo sobre isso. Agora, sobre como está a nossa formação profissional para lidar com as pessoas idosas e como anda a qualificação dos profissionais que vão atuar ou atuam com os idosos, é algo ainda inusitado. São realidades pouco investigadas e conhecidas.
A presença cada vez maior de idosos na população ainda não despertou respostas da sociedade para as suas necessidades e interesses. No campo da educação, da formação profissional, que me refiro nesse parágrafo, conta-se nos dedos de uma das mãos, o número de Instituições de Ensino Superior – faculdades públicas e/ou privadas que oferecem cursos na área do envelhecimento humano. Cursos de Geriatria e de Gerontologia. Acho que aqui cabe uma pequena observação sobre essas duas disciplinas. Enquanto que a Geriatria é uma especialidade própria – privatista – do médico ou da médica, a Gerontologia tem uma natureza não-exclusivista, aberta à participação de profissionais de outros campos do saber científico. Embora possamos ter geriatras-gerontólogo/as, o contrário não é possível. O importante e imprescindível é que a atuação desses dois importantes profissionais especialistas do cuidado aos idosos estejam articulados e integrados visando realizar uma intervenção global sobre a saúde da pessoa idosa. Não dá mais que os cuidados dirigidos às pessoas idosas sejam executados por profissionais inabilitados (ainda temos muitos). Aqueles ou aquelas que atuam tendo a compreensão de que a pessoa idosa é um adulto em miniatura. Nada disso, senhores! O mundo de uma pessoa idosa é muito particular. E muitas das vezes, esse mundo não se repete numa próxima consulta com uma outra pessoa idosa.
Há uma anedota clássica no jargão dessas especialidades, geriatria e gerontologia, que diz o seguinte: uma senhora de 80 anos foi se consultar num serviço de saúde. A queixa principal dela era uma forte dor no joelho esquerdo, que a deixava triste e desanimada com a vida. Não tinha como continuar o que gostava muito de fazer, as caminhadas matinais. O profissional muito bem intencionado e atento – coisa rara de acontecer – disse para a senhora assim, em resposta a sua queixa: não liga não, Dona Maria, isso é assim mesmo. É da idade! Ela, em parte, consolada pela resposta, mas, discordando do comentário, fez um breve silêncio interior, e disse, você pode me ouvir, doutor?: o joelho direito tem a mesma idade que esse aqui, e nunca senti dor. Moral da história. Ninguém sente dor à toa, ou porque está velho. Envelhecer não é necessariamente adoecer.
E um outro ponto a se observar: o atendimento à pessoa idosa precisa de mais tempo de investigação e pesquisa para um diagnóstico certo. O que requer habilitação. Precisamos avançar. Não estamos preparados, suficientemente, para o atendimento com qualidade às pessoas idosas no nosso dia-a-dia. Muitas das vezes, a indiferença começa dentro de nossa própria casa. A prática de atenção à saúde, como em outras situações, reproduz o pouco caso que se tem na sociedade com as pessoas idosas, principalmente com as mais pobres. O que por si só traz a ideia de que, se é para as pessoas idosas, qualquer coisa serve.
Essa cultura, ideologicamente voltada para as pessoas mais novas, envelheceu. Como já escrevi por aqui, sobre o que canta Arnaldo Antunes, “não há nada mais moderno, do que envelhecer”. Estamos vivendo mais. E essa nova realidade tem que trazer com ela mudanças profundas no nosso cotidiano. Principalmente em nossas relações sociais e públicas com as pessoas idosas. Com mais respeito. Compaixão. E olhar diferenciado. Na vida cidadã e da coletividade passou da hora de a cidade enxergar seus moradores mais idosos com políticas públicas na direção de enfrentar os seus principais problemas que os dificultam a terem uma vida melhor, não só fisicamente, vivendo mais; mas, principalmente, vivendo melhor. Com qualidade de vida e cidadania assegurada. Sem violência. Dentro e fora de casa. Sem crédito consignado. Sem mortes no trânsito. Sem bulling. Sem filas nas madrugadas. Com profissionais capacitados para atendê-los em todas as esferas da vida social.
Uma nova sociedade vem se formando com o envelhecimento da nossa população. O que requer de nós, profissionais do envelhecimento, estudo permanente sem perder a dimensão humana do nosso trabalho.