Um povo, dois destinos

“Norte–americanos e soviéticos, sem perguntar aos coreanos, decidiram separar um povo, sua cultura, seus costumes, sua espiritu-alidade e até famílias”


Por Rita do Val, Coordenadora do curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina (FASM)

04/02/2018 às 07h00

A possibilidade de a Coreia do Norte participar, em fevereiro, dos Jogos de Inverno de PyeongChang, na Coreia do Sul, mesmo que não se concretize, abre uma perspectiva para a retomada do diálogo entre dois estados que abrigam o mesmo povo. É algo a ser buscado, mesmo se tratando de avanço ainda tênue, muito distante de corrigir os equívocos verificados nos antecedentes históricos que levaram à cisão do país asiático e às suas graves consequências.

A separação da Coreia, perpetrada pelos Estados Unidos e pela então União Soviética, no contexto do final da Segunda Guerra, teve o pretexto, politicamente correto, de libertá-la do jugo japonês, que remontava ao século 19. Liberdade, contudo, não definiu a nova condição da península, cuja divisão atendeu à disputa imperialista entre as duas grandes potências militares emergentes do grande conflito mundial. Norte-americanos e soviéticos, sem perguntar aos coreanos, decidiram separar um povo, sua cultura, seus costumes, sua espiritualidade e até famílias, com a instituição de dois estados com regimes políticos diferentes e ambos divergentes da base sociológica contida no confucionismo, que, independentemente de religião, é – ou foi… – a essência da organização social do povo coreano.

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A sequência da história todos conhecemos: desenvolvimento do Sul, com democracia e capitalismo moderno, mas sempre com a presença de pesada força militar dos Estados Unidos, com bases fortemente armadas e continente numeroso de soldados, que jamais abriram mão de sua presença e vigilância na Península da Coreia; deterioração política e econômica no Norte, onde uma ditadura hereditária, hoje comandada pelo inconsequente Kim Jong-un, tira o pão e oferece armas nucleares à sociedade, como símbolo de um nacionalismo ufanista, unicamente destinado a sustentar uma estrutura anacrônica de poder. A União Soviética já não existe, a Rússia não tem mais qualquer interesse no regime norte-coreano, e a China, preocupada com sua inserção econômica global, mantém o discurso de apoio, mas se mostra cada vez menos disposta a bancar o “aliado” num eventual conflito bélico.

O ditador da Coreia do Norte tem agora a obsessão de tornar o país uma potência nuclear. Megalomania que encontrou respaldo à altura após a posse de Donald Trump na Presidência da República. Um choque de egos que ressuscitou o fantasma de uma guerra atômica, que há muito não assustava a humanidade.

Com certeza, a presença militar dos Estados Unidos, a marcante influência desses país na democracia do Sul e sua permanente interferência nas relações entre os dois estados da península dificultam a retomada do diálogo. É certo que a ditadura do Norte justifica permanente atenção, mas na medida certa, para que o entendimento entre os dois lados tenha mais chance. A Coreia do Norte está isolada do mundo, distanciando-se até mesmo dos antigos aliados; a Coreia do Sul está totalmente alinhada à civilização global, mas segue submetida a uma forte influência de seu protetor Tio Sam, por mais que se tente disfarçar isso.

A divisão do país foi um erro resultante do braço de ferro da Guerra Fria. É chegada a hora de corrigir esse equívoco histórico, permitindo que o povo coreano, jamais cindido em sua alma, essência e cultura, possa dialogar com mais autodeterminação. Sem a lógica ocidental nas negociações, quem sabe predomine a sabedoria de Confúcio e se possa chegar a um entendimento, mesmo tendo em um dos lados a insanidade de Kim Jong-un. É preciso “dar uma chance à paz”, como cantou o imortal John Lennon nos anos 1960, clamando pelo fim da Guerra do Vietnã, resultante, aliás, da mesma disputa imperialista que separou povos e lhes impôs diferentes destinos.

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