Audiência pública escuta perseguidos durante a ditadura
Entre presos e perseguidos políticos, sete depoimentos reviveram tempos sombrios de tortura e cerceamento de direitos políticos no país
Juiz de Fora recebeu na manhã desta quarta-feira (21) o quarto evento público da Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg), em audiência que teve como tema a “Ditadura Militar na Zona da Mata: Memórias da Repressão, Vozes da Resistência”. O evento teve amplo caráter intergeracional, com muitos adolescentes acompanhando os depoimentos de pessoas e ex-presos políticos que vivenciaram abusos, torturas e violações de direitos durante o período da Ditadura Militar (ver quadro), que se alongou por mais de duas décadas, entre 1964 e 1988.
A despeito da pecha que a cidade herdou de ter sido o berço do golpe militar, pelo fato de as tropas do general Olímpio Mourão Filho ter partido daqui em direção ao Rio de Janeiro em mobilização que resultou no regime de exceção, os depoimentos foram no sentido de destacar a resistência no município e a divulgação da história como forma de se evitar a ocorrência de novas ações de truculência praticadas por agentes do Estado.
Além dos depoentes, foram homenageados outros nomes ligados à resistência ao governo militar, como Clodesmidt Riani, José Villani Côrtes, Misael Cardoso Teixeira e Moisés Alex Alves. Os trabalhos foram conduzidos pelo coordenador geral da Covemg, Robson Sávio Reis Souza, e contaram com a presença de outros integrantes da comissão, do secretário de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania de Minas Gerais, Nilmário Miranda, o secretário-adjunto Biel Rocha, e do subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, José Francisco da Silva. Entre os vereadores, presentes estavam Rodrigo Mattos (PSDB), Roberto Cupolillo (Betão, PT), Charlles Evangelista (PP) e Vagner de Oliveira (PSC).
Em defesa da história como ferramenta de combate a tortura e abusos
Edison Nogueira da Silva, 85 anos, aposentado da Companhia de Estrada de Ferro Leopoldina, preso em 1965 sob a acusação de participar da resistência ao regime junto ao Sindicato dos Ferroviários
“Recebi uma ordem do almirante Cândido Aragão para atravessar o trem na Rua Engenheiro Bicalho (no Rio de Janeiro), para evitar a passagem das tropas do General Mourão”, contou Edison. Uma da primeiras ações de resistência ao golpe militar após as tropas do general Mourão Filho deixar Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro, a movimentação foi realizada em 1º de abril de 1964. Segundo ele, o maquinista da locomotiva acabaria assassinato mais tarde pelas forças de segurança da Ditadura Militar. “Tive que fugir”, relatou, ao lembrar que o Sindicato dos Ferroviários da Estrada de Ferro Leopoldina era um dos mais atuantes à época. Em seu depoimento, Edison relatou ainda experiências na clandestinidade e revisitou violência físicas praticadas por agentes da repressão. “Cheguei a ser preso. Fui algemado. Um cabo me empurrou, bati com a boca no chão e quebrei meus dentes.”
José Luiz Ribeiro, 75, professor universitário aposentado, dramaturgo e diretor teatral, vivenciou ações de censura à imprensa e às produções culturais
Um dos nomes mais conhecidos da cena cultural de Juiz de Fora, José Luiz Ribeiro relatou atos de censura ocorrido na redação do extinto Diário Mercantil. “Sempre vinha um policial que anotava tudo e saía bufando. Depois, a gente sabia qual notícia havia sido censurada.” José Luiz também falou sobre a relação entre os produtores teatrais e os agentes de repressão. “Posso dizer que torturei muito agente da Polícia Federal”, afirmou, em tom de brincadeira, ao revelar a inexperiência da repressão local no exercício da censura. “Eles acompanhavam as apresentações para ver se não estávamos alterando os textos”, lembra, insinuando que, aos olhos da truculência, textos do grego Sófocles, soam como martírio. Ele lembrou ainda passagem em que um texto foi proibido quando o público já chegava à Casa D’Itália para acompanhar a peça. José Luiz destacou o papel da arte como ferramenta de resistência, posição firme defendida em vários textos do Grupo Divulgação, como montagem de “A Morta”, de Oswald de Andrade, na inauguração do Fórum da Cultura, em 1972.
Francisco Carlos Limp Pinheiro, 61, filho do vereador Francisco Afonso Pinheiro, cassado em 1964 por recomendação do general Olympio Mourão Filho
O filho do ex-vereador se emocionou ao falar do pai e dos outros três parlamentares do PTB – Jair Reihn, Nery de Mendonça e Peralva de Miranda -, cassados logo após a consolidação do golpe militar. “Na época, o PTB tinha a maior bancada da Câmara. Todos ligados a movimentos sindicais. Meu pai teve o mandato tirado arbitrariamente e foi um dos primeiros a ser preso no país.” Francisco Carlos Limp Pinheiro recordou ainda de que, já no dia 31 de março de 1964, pouco depois de o general Olympio Mourão Filho iniciar a marcha que resultou em golpe de Estado, o pai foi levado por policiais quando trabalha na manutenção de um poste – Francisco Afonso Pinheiro também era funcionário da Cemig. Além de abusos, remontou situações que beiram o absurdo. “Era uma tremenda paranoia. Meu pai era asmático e um dia acordou pedindo pela ‘bomba’. Invadiram nossa casa, Reviraram tudo. Só aí, minha mãe entendeu e interveio: a única bomba que tem aqui é esta bomba de bronquite.
Ricardo Fontes Cintra, 75, preso em Ibiúna quando participava do Congresso da UNE, passou por prisões em Belo Horizonte, Juiz de Fora e São Paulo, tendo sido torturado
Em um dos depoimentos que mais expuseram a crueza de agentes a serviço do regime militar, Ricardo Fontes Cintra contou que até hoje não é capaz de trocar uma lâmpada em casa, trauma residual das sessões de tortura às quais foi exposto. “Tenho medo de levar choque.” Ele revelou ainda que acredita que os problemas na retina e na visão, desenvolvidos ao longo dos anos, sejam frutos das agressões, especialmente a conhecida como “telefone”. “Como professor de História, acho importante sempre denunciar a tortura para que isto não volte a acontecer.” O juiz-forano contou ainda que foi perseguido apenas por sua participação no movimento estudantil da época e passou a ser “visado” após disputar as eleições de um diretório acadêmico. Chegou a ter o bigode queimado por cigarro após ser preso durante o Congresso de Ibiúna, “o mais famoso e mais desorganizado” do movimento estudantil da época. Ricardo relatou mais um fantasma dos sombrios tempos da ditadura militar: a música “Can’t take my eyes of you”, gravada originalmente por Frankie Valli. “Quando estava preso, a música sempre tocava alto e vinha acompanhada de gritos. Sempre imaginava que as meninas estavam sendo torturadas.”
Vanderli Pereira Pinheiro, 62, ex-vereador de Tombos por três mandatos e liderança ligada do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade da Zona da Mata Mineira
A descoberta de atos de perseguição, coação e abusos aos direitos humanos em municípios menores e de características rurais é considerada uma das principais novidades dos trabalhos realizados pela Comissão da Verdade de Minas Gerais (Covemg). Coordenador do colegiado, Robson Sávio admitiu que a história relegou a remontagem da repressão aos grandes centros urbanos. Mais a maior amplitude da truculência começou a ser mais conhecida após depoimentos como o de Vanderli Pereira Pinheiro. Pioneiro na criação de um sindicato de trabalhadores em Tombos, mobilização que se ampliou por outros municípios mineiros, ele conta que até a redemocratização, a partir de 1988- e até depois disso -, qualquer questionamento de trabalhadores era alvo de repressões psicológica por parte de patrões – encarnados na figuras do “coronéis”, capangas e até mesmo forças do Estado. “Em 1985, o trabalhar ainda apanhava do patrão.” Vanderli ainda relatou a perseguição à organização sindical e relatou ter sido ele mesmo alvo de atentados e emboscadas.
José Luiz Guedes, 77, líder estudantil e ex-deputado federal entre 1983 e 1987, no período de reabertura política que antecedeu a redemocratização
Nome conhecido no cenário político de Juiz de Fora, José Luiz Guedes relembrou seu envolvimento com a militância estudantil dos nos 1960 e 1970 e o consequente enfrentamento político com o regime militar, o que o deixou, por vezes, exposto aos arbítrios da repressão. Ao longo de seu depoimento, Guedes adotou um tom de emotivo em seu discurso e, por vezes, fez declaração de amor à causa trabalhista e a sua esposa e parceira de vida e militância, Nair Guedes. “Tínhamos um filho a cada congresso”, disse, lembrando o início do relacionamento ainda durante o movimento estudantil e à resistência política do casal. Relembrou também situações de abusos, como passagem em que as forças de repressão teriam utilizado ácido para dispersar mobilização estudantil e citou prisões e a fuga após a queda do XXX Congresso da UNE, realizado clandestinamente em Ibiúna (SP). “Nunca me conformei com a prisão. Aquelas grades não me prendiam, mas seguem prendendo a classe trabalhadora.”
Nair Guedes, 72, líder estudantil e ex-vereadora em Juiz de Fora entre 2003 e 2004
Ex-vereadora, Nair Guedes fechou a sequência de depoimentos prestados ao público pelas vítimas de abusos praticado pela repressão durante a ditadura militar. Assim como José Luiz Guedes, ela também abordou a história de vida do casal. “Mesmo diante de todas dificuldades. Fizemos a opção de ter a nossa família. Não foi fácil ter filhos na clandestinidade e no exílio.” Nair contou ainda sobre sua única prisão, quando caiu após atos de panfletagem no Recife, onde vivia clandestina com o nome de “Norma”. “Meu maior medo era que eles descobrissem que estava grávida de minha terceira filha”, lembra, temendo que as sessões de torturas pudessem comprometer sua gestação. Emocionada, lembrou ainda o nome de duas companheiras de resistência: Gilse Consenza e Loreta Valadares. “A Gilse foi exposta a várias formas de tortura. Lembro-me dela contando que ficava apenas olhando para a frestinha da janela, esperando o dia nascer, pois sabia que, quando o dia nascia, a tortura terminava”, disse, relembrando um período sombrio em que a truculência era institucionalizada, burocrática e batia cartão em nosso país.