Instagaleria: O que pode o Instagram para as artes visuais?

Como uma grande exposição individual, rede social é alternativa para artistas exibirem seus trabalhos, mas desafia pela efemeridade, rigidez e ausência das percepções físicas da obra


Por Mauro Morais

30/08/2020 às 06h55

Em 1855, o então diretor da Academia Imperial de Belas-Artes, Manuel de Araújo Porto Alegre, questiona o poder de uma tecnologia recém-criada: “A descoberta da fotografia foi útil ou perniciosa à pintura? E se ela chegar a imprimir as cores da natureza com a fidelidade com que imprime as formas monocromaticamente, o que será da pintura e mormente dos retratistas e paisagistas?”. O tempo tratou de respondê-lo e também de reformular a questão diante do avanço do ambiente virtual. Da mesma forma como a fotografia se apresentou aos artistas como nova mídia de expressão ou simplesmente suporte para o registro de suas criações no século XIX, plataformas de redes sociais do século XXI podem ser aliadas dos artistas ou mesmo ferramenta e até linguagem para trabalhos. Impossível seguir na arte sem se render ao Instagram, defende um coro de artistas, jovens e nem tão jovens, chamando atenção para a rede que pode ser galeria e portfólio.

Guilherme Melich encara o feed da plataforma como um portfólio em constante atualização. (Foto: Fernando Priamo)

Iniciada a pandemia de coronavírus, o artista visual Guilherme Melich parou imediatamente de tatuar. As aulas de desenho e pintura que ministrava em seu ateliê migraram para o ambiente virtual. “Foi a época que mais consegui vender trabalhos. Quando começou a pandemia, anunciei que venderia algumas obras por um preço mais barato. Começou a pintar um tanto de encomenda, de retrato e de paisagem. Comecei a pintar aquarelas, que consigo produzir mais rápido; está rolando bastante aquarela, e tenho encomendas de óleo sobre tela. Parece que fechou uma porta e abriu outra”, indica ele, que, observando amigos, artistas e galerias mundo afora, desenvolveu uma dinâmica particular para alimentar a própria conta. No feed, publica trabalhos prontos; nos stories, apresenta o processo. “É um plataforma rica para as artes visuais. O perfil fica como um portfólio atualizado. Tenho o site, mas, se fosse atualizar o tempo inteiro, seria uma megafunção. A solução mais prática foi já na página principal ter um espelho do Instagram. O que tenho produzido de mais recente está ali”, defende.

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Professor Ricardo Cristofaro divulga seus próprios trabalhos na plataforma. (Reprodução)

“O que vejo é um processo contínuo de transformação”, observa Ricardo Cristofaro, professor do Instituto de Artes e Design da UFJF e diretor do Museu de Arte Murilo Mendes. Em seu mestrado, na Universidade de Brasília, na década de 1990, Cristofaro investigou a arte digital, relacionando arte e tecnologia da imagem. O terreno, contudo, ainda era árido. A internet, bastante precária, estava longe de conceber modelos como os atuais. O debate acerca das perdas e ganhos do ambiente virtual, no entanto, manteve-se, como já se conservava desde o advento da fotografia. É anterior, portanto, ao famoso ensaio do sociólogo Walter Benjamin sobre a aura da obra de arte diante da possibilidade de se reproduzir indefinidamente. Curiosamente, a mesma fotografia que, segundo Benjamin, retirava da arte sua potência singular, foi o que permitiu a estudantes como Cristofaro acessar a história da arte mundial. Em seu período de faculdade, lembra o professor e artista visual, seu contato limitava-se às reproduções, já que não havia a possibilidade de realizar viagens para todos aqueles museus das grandes obras. “A gente conhecia o trabalho dos artistas sem nunca ter visto. A gente consumia arte através da reprodução da arte”, conta.

Fernando Priamo, repórter fotográfico da Tribuna, vê na plataforma uma oportunidade para ampliar o alcance de sua produção autoral.  (Foto: Divulgação)

Hoje, tal conhecimento ganha novos contornos, já que o Instagram rompe com o cânone e permite o acesso a artistas distantes, talvez nunca visibilizados por um sistema de arte ainda refém de padrões e pré-conceitos. “Para um artista experimental, um trabalho sem atmosfera comercial, que se restringe a uma proposição que não gera um produto e que dependeria de um retorno institucional, pode encontrar saída nas plataformas digitais”, indica Cristofaro. “Sem dúvida é um espaço do conhecimento da arte maravilhoso. O alcance que a informação pode ter se potencializa muito, até num sentido incontrolável”, sugere o pesquisador. Repórter fotográfico da Tribuna, Fernando Priamo não apenas se aproveita dessa amplitude, com seguidores até no Japão, como a alimenta dia a dia. Suas postagens de maior interação na rede criada para divulgar seu trabalho autoral são as programadas para 4h, justamente quando inicia o horário comercial em diferentes países europeus, foco de sua atuação. Desde 2019, quando começou a dedicar-se à plataforma, o fotógrafo percebeu a importância de se estabelecer rotas para navegar no vasto mar das redes sociais. “Não basta inserir conteúdo, é preciso saber o que postar. Não adianta ter um milhão de seguidores, se não tem um objetivo muito claro sobre o que deseja com a rede”, adverte.

Dedicação é fundamento nº 1

Feed da conta de Fernando Priamo, que programa postagens para que tenham boa audiência na Europa. (Reprodução)

Diariamente, Priamo dedica cerca de três horas ao uso do Instagram. E além de pensar as publicações, definir hashtags, responder mensagens, seguir contatos afins, ele também faz marketing digital. Assim, já foi convidado para integrar uma galeria virtual na Holanda e entrou para o elenco de uma galeria física de São Paulo. Pela plataforma, também, fez contato com a empresa alemã de impressão artística de alta qualidade que hoje imprime seus trabalhos. “O artista tem que ter uma conta, senão está fora do mundo”, concorda Petrillo, artista visual e professor dos cursos de arquitetura e urbanismo e design de interiores da UniAcademia. Coordenador da galeria Hiato – Ambiente de Arte, que este ano completa 18 anos, Petrillo administra a própria conta e a do espaço, e chama atenção para o esforço que precisa ser empreendido no desejo de se fazer presente on-line. “Alimentar a rede é muito difícil. É preciso criar um limite, porque acaba se tornando um diário pessoal, e eu não gosto de estar muito exposto”, admite, pontuando a tênue linha entre público e privado numa plataforma feita para descortinar vidas e rotinas.

“Preciso tirar um momento só para fazer isso. E, de fato, consome”, concorda Guilherme Melich. “Entra numa parte de promoção do trabalho e não de criação”, lamenta, pontuando um saber que ultrapassa a noção de marketing digital e diz respeito aos algoritmos da rede. “Não tenho muita paciência e talvez até disciplina para fazer a manutenção. Vi como isso reflete em resposta positiva e percebi que preciso me dedicar a isso”, diz, reconhecendo que a descoberta feita durante a pandemia servirá aos dias seguintes à crise. Atualmente, Melich inclusive impulsiona algumas de suas publicações. “Tenho testado. Meu objetivo atual é chegar numa galera que não alcanço organicamente, de outras lugares e com outros perfis.” Ainda que seja uma alternativa para alguns artistas comercializarem os próprios trabalhos, como faz Melich e como aponta a maior feira de arte do país, a SP-Arte, que termina neste domingo e aconteceu no formato virtual, as plataformas de internet não devem configurar uma revolução no comércio de arte, graças a suas próprias limitações.

Petrillo prefere publicar aquarelas e desenhos na rede. (Reprodução)

“Geralmente o comprador de arte quer ver a obra na própria casa. A empatia com o trabalho exige o presencial. Fora que a compra on-line exige um deslocamento que, para a obra de arte, não passa pelo e-commerce e exige seguro”, sublinha Petrillo, destacando que a proximidade entre galerista e consumidor é bastante decisiva. “Sem ela, a obra pode ser como um produto numa loja de departamento”, comenta, para logo acrescentar a importância de outros sentidos na transação: “Ver uma obra de arte on-line é totalmente diferente, não dá para sentir o visceral da pincelada”. Melich vê um momento de transição. “Não acho que substitua, mas atualiza. Hoje vejo galerias criando perfis e se mostrando muito mais ativas, tentando, inclusive, interagir com uma nova geração de colecionadores. Acredito que a galera mais nova vai primeiro sacar a galeria na internet e, depois, presencialmente, antecipando a experiência”, aposta Melich. Petrillo não discorda: “Não temos regra para nada. A pandemia trouxe a obrigação de nos reinventarmos a todo momento. É possível comprar quadro em galeria, leilão, direto com o artista, pela internet, mas o presencial certamente é determinante”.

O que pode um Instagram?

Morto em 1984, o artista plástico Frederico Bracher Jr. teve algumas mostras individuais robustas, uma delas retrospectiva de 50 anos de produção no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Nenhuma, contudo, conseguiu fazer uma leitura tão vasta e múltipla como a de sua recente conta criada no Instagram, na qual uma de suas netas reproduz diferentes trabalhos do artista, cujo centenário é comemorado este ano. “É uma plataforma legal tanto para o resgate quanto para a afirmação de quem está produzindo”, defende Guilherme Melich. Segundo o professor, pesquisador e gestor Ricardo Cristofaro, o espaço pode, ainda, ir além da informação. “A plataforma é um espaço onde pode se fazer divulgação da obra de arte e também uma proposição de uma experiência outra”, aponta, referindo-se à arte digital. “Uma das grandes diferenças da arte digital é que não é a digitalização de algo que já existe, mas a criação para essa linguagem”, explica, destacando que o simples registro de trabalhos como desenho, pintura, escultura, dentre outras linguagens físicas, implica em perda de experiência no ambiente digital.

Projeto IlustraMonstro, do artista visual Luiz Gonzaga, dialoga com notícias e memes com suas intervenções em fotografias da cidade. (Reprodução)

Se nos anos finais do século XX, após o advento da internet, os artistas se detinham nas poucas possibilidades das ferramentas digitais, hoje, observa Cristofaro, são capazes de desenvolver poéticas nas plataformas. Esse é o caso das ilustrações de Luiz Gonzaga e seu IlustraMonstro. Seus desenhos de monstros sobrepostos a fotografias dialogam com memes, fatos – como os incêndios de florestas no país – e memória – resgatando a paisagem da cidade. O trabalho é definido pelo artista como intervenção urbana digital. “Os artistas vão se adaptando, tentando costurar nas ferramentas a possibilidade de tentar fazer o diferente”, afirma o professor, apontando, por sua vez, limitações na plataforma. “O Instagram tem limites e você vê artistas que conseguem subverter isso. O Instagram é reto, objetivo e mais duro. Para um artista experimental em tecnologia, ele é bastante limitante”, observa, citando a impossibilidade de criação de mundos virtuais, hiperlinks, sensações táteis com dispositivos de entrada. “É um álbum de imagens, abrindo oportunidades para seguir para outras experiências.”

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Feed da galeria Hiato: presença na rede é obrigatória, mas não decisiva para o mercado. (Reprodução)

Inicialmente, o formato quadrado incomodou Guilherme Melich. Mas passou. “Entre bater a cabeça e assimilar a coisa, preferi a segunda opção. É mais fácil jogar com o jogo. A plataforma tem mais pontos interessantes do que desinteressantes”, avalia ele, que, para suas pinturas de pinceladas enérgicas e com excesso de matéria, estabeleceu uma maneira de postar simulando a relação entre espectador e obra. “Tenho tentado usar o que considero ser a forma que mais se aproxima da experiência real. A primeira foto é de longe, como se fosse a chegada na galeria. Depois vou mostrando os detalhes, tentando simular a aproximação”, narra, consciente das perdas que também passam pela própria compressão do arquivo ao adentrar a plataforma. “Gradualmente vai perdendo as camadas do que seria a experiência real”, alerta. Não se trata de um equivalente de uma galeria com uma exposição de fotos. “A fotografia produzida nas artes visuais é pensada na escala, na montagem, na moldura que cria um contexto. Ter uma fotografia que na revelação é maior que você implica uma leitura diferente. No Instagram não há isso”, pontua Cristofaro. Se vivo estivesse, Manuel de Araújo Porto Alegre questionaria o Instagram? Perguntaria se a descoberta foi útil ou perniciosa?

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