Terror e crítica social pesada no cinema local

Como foi o último dia da Mostra Competitiva Regional do Primeiro Plano 2017


Por Carime Elmor

27/10/2017 às 21h11- Atualizada 27/10/2017 às 21h12

“Rosalita”, de Luciano de Azevedo, faz crítica ao fanatismo religioso, com cenas de terror psicológico e artístico (Foto: Divulgação)

Uma sessão de “1984”, dirigido por Gabriel Costa, trouxe a filmagem de uma das cenas do livro do George Orwell, discurso que tem sido retomado no momento atual diante dos discursos de censura. Emendou com o terror de “Rosalita”, de Luciano de Azevedo, que trazia a descrição “Amaldiçoados serão os adoradores de deus…”.

E então veio “Fun também é morte”, da diretora Marize Moreno, que comentou que a ideia era causar algum humor e leveza em um filme nonsense que cativou a plateia. “Ninguém”, de Rodrigo Brandão passa o sentimento de solidão de um homem em situação de rua que acaba tendo um desfecho amedrontador para quem permitiu sentir-se em sua pele. “Pele de monstro” é o documentário de Barbara Maria, construído a partir de uma experiência real com discursos sobre racismo, um filme protagonizado por negros falando sobre o “desprotagonismo” de atores negros no cinema.

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O penúltimo filme da mostra foi um documentário inusitado filmado em Viçosa com uma figura local, o “Moço de vestido”, que dá nome à obra de Guilherme Gwd e Heron Alves. Por fim, nossa cabeça estourou com bateria, guitarra e gritos nas alturas de um resgate da subcultura J-Rock (Japanese Rock) em Juiz de Fora, feito por Leonardo Amorim.

Impactante e perturbador

“Rosalita” vai demorar a sair da minha cabeça. Difícil descrever essa experiência sem me apropriar de vocabulários com palavras fortes. Luciano de Azevedo e Carolina Queiroz, diretor e diretora de arte, estavam sentados ao meu lado no lançamento do curta em Juiz de Fora, é o segundo filme da trilogia de terror “Cabrito”, que já circulou por festivais e mostras por diversos países do mundo, além de ter sido resenhado em diversos idiomas por sites especializados. Era a primeira vez que assistiam ao filme na tela de cinema – e que impacto.

Crítica social aos aspectos mais sombrios de uma religiosidade contaminada por discursos de ódio, preconceito, misoginia e intolerância. Samir Hauaji, que interpreta o personagem principal com nome não revelado, está com todo pior sentimento do mundo concentrado em si. É mais do que um psicopata-estuprador-assassino, ele está completamente perturbado. Quem assistiu ao primeiro filme da trilogia vai entender que o motivo são as crenças religiosas que foram severamente introjetadas em sua rotina por sua mãe, interpretada por Sandra Emília Costa. Todo exagero que ele provoca, envolvendo ainda o cenário deplorável e a intensidade das ações e falas dos personagens, faz o filme estar na travessia entre um terror psicológico e artístico. “É um filme que critica a família tradicional brasileira”, resumiu Luciano antes da sessão.

Os protótipos dos corpos dilacerados foram feitos todos em Juiz de Fora e são impecavelmente asquerosos. Uma produção de terror no cinema de baixo orçamento é um desafio maior ainda e demonstra como a produção cinematográfica juiz-forana caminha com a força toda, porém em um movimento que ainda precisa ser mais reconhecido tanto aqui quanto fora. Luciano de Azevedo é um destes profissionais – diretor, roteirista, colorista, montador e editor – que vêm infiltrando em espaços nunca protagonizados por cineastas daqui. O tema do enredo, as referências de imagem, figurino e o pouco texto, tudo está muito bem amarrado, um filme que te arregala o olho no primeiro frame e não deixa você piscar mais.

Todos os personagens de “Rosalita”, mesmo os que aparecem apenas uma vez, manifestam-se com vigor e são pontuais para aquela narrativa impregnada de vingança e os piores desejos, em uma mente que parece estar sempre em alucinação, em que sua mãe costuma estar presente como uma figura que provoca medo, repressão e culpa. Santidade e satanismo estão próximos nessa narrativa impiedosa.

Marginalização dos negros

“Pele de monstro”, documentário de Barbara Maria, é construído a partir de uma experiência real com discursos sobre racismo

Curta-documentários foram produções fortes nas mostras regionais, e “Pele de monstro” leva a uma experiência proposta e filmada pela diretora Barbara Maria. O filme de terror estava presente, mas não era a questão principal, e sim o racismo. Homens e mulheres negros foram levados para uma sala, onde assistiram, juntos, a filmes da década de 1960 que têm a atuação de negros – coisa rara na época, fica claro nas falas dos entrevistados: “A noite dos mortos vivos”, de George Romero e “Mortos que matam”, de Ubaldo Ragona, Sidney Salkow.

Após a exibição, enquanto filmou inclusive a reação dos espectadores diante das cenas e a forma como o personagem negro é assassinado brutalmente, ela recolheu depoimentos profundos. A analogia do que ocorreu com o personagem assassinado foi falada sobre a marginalização dos negros em uma sociedade ainda muito racista.

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Ficou claro na fala dos entrevistados o entendimento de que o diretor quis dar a este fim, porque é o reflexo do que acontece na sociedade real, com tantos negros sendo assassinados. Uma das entrevistadas, Paula Duarte, falou sobre a importância de se permitir ser uma mulher negra e a dilaceração que muitas enfrentam em um processo de “embranquecimento” de suas características físicas. “A gente aprende a se odiar”, diz ela. “Eu sempre fui a amiga feia do grupo”, relatou outra entrevistada, que por ter tido bolsa em uma escola particular se sentia muito diferente dos demais, em uma turma de mais de 30 alunos com uma ou duas pessoas negras. Paula faz uma releitura da frase de Simone de Beauvoir ao repetir o que uma amiga a disse uma vez: “Não nasce mulher negra, torna-se”. Um documentário que fez muitos refletirem pesado no assunto – e ainda envolvendo o cinema dentro do cinema.

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