Régis José de Oliveira, o compositor que não deixa o samba morrer

Os 60 anos do autor de sambas clássicos que mantém um instituto ensinando jovens a arte do mestre-sala e da porta-bandeira e luta pelo carnaval em Juiz de Fora


Por Mauro Morais

26/01/2020 às 07h00

Foto: Fernando Priamo

A quadra era um parque de diversões para o menino. Recém-chegado ao Bairro Vila Alpina, o pequeno Régis José de Oliveira corria com seus 13 anos para o São Benedito, onde os tambores e tamborins agitavam a quadra da escola de samba Castelo de Ouro. “O seu Euclides (presidente da agremiação) animava muito os garotos da época. Quem cantava na quadra ganhava Coca-Cola e cachorro-quente. A gente ia aprendendo, então. E até o Zezé do Pandeiro, que era o cantor oficial, chegar, tinha um momento para a garotada pegar o microfone e cantar acompanhando a bateria. Ele via quem era de sambar, quem ia para a bateria e quem gostava de cantar”, recorda-se Régis da Vila, aos 60 anos. Naquele 1972 o menino fez sua estreia na avenida. “O meu boi morreu, o meu boi bumbá, o meu boi morreu, vivia o barqueiro a cantar”, cantava, da ala das crianças, seguindo o intérprete Zezé do Pandeiro. “Todo mundo achava que o Castelo tinha que ter sido campeão”, conta ele, que caiu na folia ao lado do pai, vestido de palhaço de folia de reis, papel que também desempenhou ao lado de cantador de calangos e braçagista numa plantação de café. “Ele sempre me levava quando ia cantar calango. Hoje sei improvisar devido a essa companhia. Ele era da região de Monte Verde e Torreões, onde vivia o Geraldo Pereira, e nasceu em 1918 também. Eu lembro que minhas tias, quando ouviam o rádio, falavam: ‘Olha o Geraldinho cantando!'”, narra, referindo-se ao compositor nascido em Juiz de Fora e radicado no Morro de Mangueira, autor de sambas clássicos como “Falsa baiana”.

“Não lembro dos calangos de garoto. Hoje a gente faz muito diferente, mas os versos podem ser parecidos, por exemplo”, diz Régis. E começa a cantarolar: “Jamais pensei e hoje achei muito legal, estar sendo entrevistado por nosso grande jornal”. Desde os 15 anos ele escreve. “Menino, você leva jeito! Continua assim!”, diziam os artistas da época. Num samba, um famoso cavaquinista sacou da bolsa um dicionário e entregou como presente. “Assim fui me aprimorando”, narra ele, que ainda hoje recorre ao livro. Era 1981, Régis estava no Exército, quando inscreveu e ganhou o concurso de samba para o bloco Domésticas de Luxo. Os colegas militares, e até o comandante, foram assistir à disputa daquele ano. “Aquela vitória abriu as portas para mim no samba de Juiz de Fora”, lembra o homem, que anos depois emplacou seu primeiro samba na escola que lhe abriu as portas. “Me tira a mão, Zé, me tira a mão. Me tira a mão que eu já vou lá pr’o meu Castelão. É noite de lua cheia e o Castelo já esquentou seus tamborins. Vejo o malando sambando, a mulata requebrando, num passo sem igual. Eu vou pra lá, me dá licença pra chegar, que o samba no Castelo vai até o sol raiar.”

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Encontrou seu amor na avenida

No ano em que fez sua estreia como compositor de sambas, Régis encontrou seu amor. Era carnaval e ele havia acabado de desfilar pela Castelo de Ouro. Estava na Avenida Rio Branco, próximo da Avenida Itamar Franco, onde ficava a dispersão. Uma prima de Lucimar gritou. Ele foi, cumprimentou todo mundo, menos ela, que estava vestida com fantasia da rival Juventude Imperial, apesar de ter sido criada na quadra da Rivais da Primavera. Mas não tirou a jovem da cabeça. Quando os desfiles acabaram, um amigo o chamou para dar mais uma volta no quarteirão, até que o primeiro ônibus passasse. Foi, então, que reviu Lucimar e eles se abraçaram. Namorar, só em casa, adiantou-se ela, entregando a Régis seu endereço. Naquela semana ainda ele se encheu de coragem e foi até o lugar. Ela não estava em casa. Quando ia embora, encontrou Lucimar saindo do salão. “Não consegui sair mais”, ri o homem, que três anos depois se casou e teve três filhos: Régis Júnior, hoje com 33 anos/ Jerry Adrianne (era fã do cantor), 28; e Jessica Celeste, 26. Cada filho lhe deu um neto. Há 28 anos a família mora no Jóquei Clube I, bairro que teve uma de suas ruas fechadas ano passado para a festa de 60 anos de Régis da Vila (nome em referência ao bairro onde vivia quando o samba entrou na vida). Nem bateria de escola de samba faltou.

Homem da bola e dos bailes

A música que sempre guiou a vida de Régis precede a própria vida. Os pais se encontraram num baile. A mãe, natural de Patrocínio, deixou o trabalho de cozinheira na casa de um juiz para viver o amor. O patrão seguiria para outra cidade e ela escolheu ficar.

“Apesar de ela ter só o terceiro ano primário, tinha uma letra fantástica. Tinha um vizinho que montava a ideia para as cartas para a namorada e era ela quem escrevia, tudo muito bem pontuado. Ela exigia muito da gente na parte da leitura e da escrita”, conta ele, que estudou até o primeiro ano do ensino médio e parou para se dedicar ao trabalho, começando cedo, aos 16, numa fábrica de calçados, onde fazia de tudo, da colagem da sola à limpeza dos sapatos. “Sempre fiz muitos cursos, participei de palestras. Saí da escola, mas não fiquei sem os livros, sem a vida cultural da cidade”, afirma. Mais velho de três irmãos, Régis nasceu na Rua Cruzador Bahia, na Serrinha, hoje Dom Bosco, e com apenas 1 ano mudou-se para o Mundo Novo, onde viveu até completar 10 anos. Já jogava bola o irmão André, que se tornou reconhecido no futebol da cidade. “Com 8 anos consegui jogar na Escolinha do Loyola, e aos 10 já participava da Escolinha do Tupi. Aos 15 eu estava na divisão de base do Tupi. No ano seguinte fui jogar na Segunda Divisão, no Águia Negra, do Vitorino Braga. Eu era um dos quatro garotos que eles lançaram no amador.”

Do samba fez seu estandarte

Nos anos 2000, Régis já era uma figura onipresente no carnaval da cidade, com sambas cantados em diferentes cantos. Sua Castelo de Ouro já não existia mais. No início do século, quando Zezé do Pandeiro ganhou o samba da Portela, viajou ao Rio de Janeiro e fez alguns contatos por lá. Um deles com Manoel Dionísio, da escola de mestre-sala, porta-bandeira e porta estandarte que leva seu nome. Três anos depois, o veterano visitou Juiz de Fora, veio ministrar um curso no recém-inaugurado Instituto Cultura do Samba. “Já revelamos vários garotos e garotas. Muitos estão desanimados sem o carnaval daqui, mas este ano temos casal que vai dançar em São João del-Rei, em Ubá e em Rio Pomba. Continuamos a trabalhar”, diz, calculando já ter formado mais de 200 mestres-salas e porta-bandeiras. Sem sede, a instituição oferece as aulas às quartas-feiras no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, com professores que o próprio instituto ajudou a formar. “Eles passam os primeiros movimentos, e quando a gente vê que a pessoa tem a noção, levamos ao Rio de Janeiro, onde conhecem outros profissionais e se aperfeiçoam. Tem garoto que em seis meses já consegue caminhar bem”, aponta. “Não paramos, fazemos seminários, palestras”, garante o homem que ganha a vida, ainda, como servidor da Prefeitura, atuando como recepcionista da Settra. O samba, não deixa morrer. “Samba é um espaço cultural, social e político”, defende. “É cultura que veio da oralidade e tem dificuldades em viver fazendo projetos. É preciso que os mandatários aportem verbas nelas para que continuem existindo”, brada ele, que este ano, como em todos os outros, sambará no carnaval, chorando a falta dos desfiles da cidade. Pretende visitar São João del-Rei e assistir aos desfiles de escolas de samba de Belo Horizonte. Vai aproveitar e divulgar “Virada no Jiraya”, último samba que compôs. Para Régis também, “quem não gosta do samba, bom sujeito não é, é ruim da cabeça ou doente do pé”.

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