Flavinho da Juventude plantou sementes: o legado de um artista que não fugiu à luta
Cantor e compositor morto no último sábado, Flavinho da Juventude deixa legado na música, na cultura popular e nos movimentos sociais
No alto do morro do Cemitério Municipal, de onde se avista todo o Bairro Poço Rico, um pequeno grupo estancou em círculo e a bateria da Juventude Imperial tocou “Carnaval do povo no mundo dos astros”. “A Juventude tem um tarol, que anuncia a morte do Rei Sol. Agora é noite, é noite enfim. Nas mãos do povo a lua cheia é tamborim”, entoaram, os presentes, o refrão do samba de 1979. E seguiram cantando “Zumbi, Rei Negro dos Palmares”. Entre lágrimas, batuques e cantorias, despediram-se, na manhã do último domingo (20), de Flavinho da Juventude, autor dos dois sambas e de muitos outros que marcaram a história de Juiz de Fora. Ali, imediatamente após sua morte, no sábado (19), aos 70 anos, tornava-se latente a certeza de que o cantor, compositor, professor e militante social não silenciara. “As memórias não se apagam”, concorda Sandra Portella, que de aprendiz a parceira do músico, compromete-se em preservar o legado do amigo.
Era menina ainda quando conheceu Flavinho da Juventude. A mãe era muito amiga dele, que frequentava a casa para compor e discutir política. “Eu o observava como cantor, na Juventude Imperial. Levada pela minha mãe para a escola, passei a participar dos ensaios, dos festivais e do próprio carnaval. Flavinho sempre se destacou muito, tanto pela voz privilegiada quanto pelo jeito de ser. Ele cantava guerreando, colocando toda a força na voz”, rememora Sandra, que passou a cantar na juventude, primeiro MPB, depois forró e música de baile. Um dia recebeu um telefonema. Era Flavinho indicando seu nome para cantar samba numa casa da cidade. Era a vez de Sandra, assim como a mãe, tornar-se parceira do cantor. “Eu cantava alguma coisa de samba, mas não era meu repertório. Quando ele me convidou, passei a desenvolver um repertorio. Ele permitiu que eu entrasse no mundo do samba”, diz a cantora.
Foi Flavinho quem lhe apresentou cantores e clássicos do samba. Foi com ele que ela ouviu, pela primeira vez, Cartola e Chico Buarque. “Dividimos o palco por um bom período, quase dez anos. Foi um sucesso. Aprendi muito com ele, tanto na música quanto nos aspectos pessoais”, pontua ela, destacando o senso de humor, ora ácido, ora debochado do parceiro. “A gente ria muito das coisas que ele falava. Além de cantar junto, ele fazia a gente feliz”, resume ela, que também dividiu com Flavinho a interpretação do samba-enredo da Juventude por três anos. “Ele era muito mais irreverente. O que marcava a passagem dele na avenida era a irreverência. O aquecimento dele era superdiferente, como ‘A escada da Penha’. Durante o desfile ele cantava sério, até para pontuar com os jurados.”
Flavinho é a história do carnaval
Nascido em Ubá, Flávio Aloísio Carneiro fincou raízes na região onde fica a quadra da Juventude Imperial. Sua história, portanto, funde-se à do carnaval em Juiz de Fora. “A primeira participação dele como compositor foi na Juventude, com ‘Zumbi, Rei dos Palmares’, de 1973, com o Roberto Medeiros e o Zezé do Pandeiro. O Roberto era um intelectual, muito ligado à Juventude Imperial”, narra o músico e pesquisador Márcio Gomes, contando que é justamente nesse período que a folia vive sua fase mais prolífica. “A partir de 1966 a Prefeitura de Juiz de Fora, com o Departamento Autônomo de Turismo (DAT) começou a incentivar, organizar e promover o carnaval da cidade, dando apoio para as escolas. A partir dali a festa começa a viver um crescimento. O carnaval de rua estava esvaziado, e o de clubes estavam muito fortes. Com esse apoio, os desfiles de rua passaram a ter uma visibilidade maior, com a imprensa fazendo a cobertura de ensaios e disputas de sambas-enredo”, aponta Gomes.
“Quando entrava na quadra e subia no palco, ele tinha uma alegria muito grande, conseguia colocar todo mundo para o alto. Gostava muito da quadra, de estar com a gente, de dar ideias de enredo. O Flavinho tinha um posicionamento contra o preconceito muito incisivo”, recorda-se Lu Chaves, esposa de David Chaves, fundador e presidente da Juventude Imperial. Sandra Portella também se lembra da energia do músico no palco. Segundo Márcio Gomes, é Flavinho um dos principais responsáveis pela voz de uma escola de samba que, ao longo de seus 56 anos, interessou-se por cantar a relevância da identidade cultural. “Há que se destacar o talento do Flavinho como compositor. Ele não foi um compositor só de samba. Lançou pela Lei Murilo Mendes um CD que não era de samba. Mas a marca dele é no samba, sem dúvida, principalmente na escola de samba. Ele também deixa um legado muito importante como intérprete da Juventude Imperial, tanto que ficou reconhecido pelo nome da escola. Ele chegou a compor para outras agremiações, como a Unidos de Santa Luzia, mas foram pontuais. Ele foi fiel à Juventude.”
Flavinho é o punho cerrado
Um jovem, aos 23 anos, Flavinho da Juventude compôs seu primeiro samba-enredo com o também jovem Zezé do Pandeiro. Veterano ali era Roberto Medeiros, já com seus 50 anos. Advogado, jornalista e escritor, era um intelectual respeitado e influente, interessado no samba. Pouco tempo depois, Flavinho também se tornaria esse intelectual respeitado e influente, interessado não apenas no samba, mas nas questões raciais de que tratava sua primeira composição, protagonizada por um Zumbi quando sequer havia o Dia da Consciência Negra. “O Flavinho teve um papel importantíssimo na conscientização de toda uma geração do Movimento Negro. As pessoas que militaram na década de 1980, a geração que antecedeu a minha, e que inaugurou a organização política negra na cidade, teve a possibilidade de lidar com essa influência do Flavinho, de lidar com uma consciência negra muito apurada, uma consciência construída no exercício de ser um homem preto na periferia, enfrentando o racismo em diversas instâncias, na universidade, na cidade, no cenário artístico”, defende Giane Elisa, diretora e dramaturga do grupo de artes cênicas e políticas As Ruths.
“O que é possível hoje, só é possível por conta daquelas pessoas que estiveram com a cara na trincheira no final da década de 1970 e início dos anos 1980”, reforça ela, supervisora no Departamento de Acesso à Cultura da Funalfa, chamando atenção para a habilidade do músico em socializar conhecimentos complexos através da arte, como instrumento de revolução. Sandra Portella confirma: “Ele escolhia o repertório dele de acordo com a política. Sempre gostou de músicas trabalhadas do ponto de vista político. Ele queria passar o recado dele.” E assim cantava Caetano Veloso, Novos Baianos, Gilberto Gil, dentre muitos outros compositores também comprometidos com uma perspectiva humanista. “Ele tinha muitas ideias e teorias a respeito das relações raciais, sempre muito irreverente, muito consciente. Era uma pessoa que estudava muito, lia muito e partilhava aquilo que sabia. São inúmeros relatos. A história que eu mais gostava era a do ‘Branco ventríloquo’. Segundo ele, o branco ventríloquo era aquele que tinha um bonequinho preto sentado no colo, que ele manipulava para poder legitimar as atitudes racistas dele. Ele fazia o bonequinho preto falar que ele (o branco) era bacana, não era racista, numa analogia muito engraçada. Ele contava de um jeito debochado, com um humor bastante ácido. Com isso, ele ensinava”, narra Giane.
Flavinho era voz d’África
Quando o angolano Augusto Alfredo Marzuque, criador e apresentador do programa “Voz d’África” na rádio comunitária Mega FM, decidiu regressar para sua terra natal, Flavinho Juventude candidatou-se para substitui-lo. Passou, então, seus próximos quatro anos apresentando a atração transmitida aos sábados no veículo do Bairro Santa Cândida. “Era sobre os 54 países, história, o povo, as etnias, as línguas, a cultura. Eram passadas informações, com entrevistas e músicas de Angola, Costa do Marfim, Nigéria e vários outros países. Havia muita participação da comunidade e foi muito bom como fonte de informação”, lembra Adenilde Petrina, professora e militante social, fundadora da Mega FM, ressaltando a África real e gigante que tanto Marzuque quanto Flavinho apresentaram para Juiz de Fora. “Falávamos, também, sobre a importância de conhecer a África, porque o nosso país deu as costas para o continente. Dizíamos que era importante saber de onde vieram nossos ancestrais, em que condições vieram para o Brasil. Também falávamos que foi na África que o primeiro homem ficou de pé, que a história do continente, além de muita rica, é muito antiga, e o Ocidente só conhecia a África quando os portugueses tomaram Ceuta, em 1415”, conta Adenilde. Flavinho, portanto, compartilhava nas ondas do rádio o que também levava para a avenida.
Nas recordações de Giane Elisa, Flavinho também dizia que todo preto tinha um branco dentro de si e, num determinado momento, precisava arrancar o branco de dentro e conversar. “Vai caminhar comigo?”, deveria perguntar. Hoje a academia estuda tal questão nas teorias da branquitude, do privilégio branco. “Ele já tinha essas teorias na vivência de um homem preto, de periferia, pobre e analfabeto durante muitos anos”, pontua Giane, referindo-se ao cidadão que aos 52 anos formou-se em química na UFJF. “Ele tinha um conhecimento profundo sobre o modo como as relações se davam no continente africano, no movimento pan-africanista, das independências do continente. Ele estudava num tempo em que não era fácil fazer isso, já que não tínhamos as redes disponíveis como temos hoje. Ele tinha um compromisso de que nós, negros e negras, pudéssemos nos instrumentalizar uns aos outros. Acreditava nessa emancipação do povo negro a partir do estudo e exercitava isso. Não tinha problema nenhum em socializar e fazer com que os seus tivessem esse conhecimento, e tê-lo como forma de enfrentamento ao racismo”, acrescenta a diretora e dramaturga.
Professor de química no Ensino para Jovens e Adultos da Escola Municipal de Santa Cândida, integrante e até presidente do Batuque Afro-Brasileiro Nelson Silva, Flavinho também atuou no Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Autor de quase 20 sambas vitoriosos do carnaval de Juiz de Fora, manteve o compasso acelerado até a diabetes fragilizá-lo. Já havia, portanto, plantado muitas, muitas, muitas sementes. Adenilde Petrina recorda-se do parceiro de luta apresentando o “Voz d’África” e contando, também, do negro brasileiro, da importância da resistência contra a escravidão de ontem e de hoje. Flavinho falava de Zumbi, de Dandara, de Mandela, de Biko. “Ele trazia notícias do que acontecia nos países africanos e das lutas do movimento negro no Brasil e a importância de combatermos o racismo”, ressalta Adenilde, para logo completar: “Ele repetia sempre: ‘Nós não queremos ser tolerados, mas respeitados’.”