‘É um trabalho forte e intenso’, avalia curadora da 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Além de pesquisadora, Lila Foster, doutora pela USP com tese relacionada a amadorismo no cinema nacional, trabalha com a recuperação de filmes analógicos e foi também curadora do Curta8, Festival Internacional de Cinema Super 8 de Curitiba


Por Carime Elmor

23/01/2018 às 07h00- Atualizada 24/01/2018 às 17h09

Lila Foster foi uma das responsáveis pela seleção dos 30 longas-metragens (de aproximadamente 160 enviados) da Mostra de Cinema de Tiradentes. (Foto: Beto Staino/Universo Produção)

Lila Foster (lê-se Laila) e Camila Vieira estão na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes ocupando seus espaços como curadoras e integrando, hora mediando, as mesas de debate que acontecem diariamente acerca de temas que permeiam o momento atual do cinema brasileiro. Pela primeira vez, após em 2017 ter participado da curadoria de curtas, Lila, em parceria com Cleber Eduardo, foi a responsável pela seleção dos 30 longas-metragens (de aproximadamente 160 enviados) e, também, pela elaboração da temática desta edição: Chamado Realista. Já Camila, jornalista e crítica de cinema, foi convidada a estrear na curadoria dos 72 curtas-metragens, dentre os 772 inscritos para este ano. Lila é crítica de cinema e acompanha a produção cinematográfica brasileira há anos. Além de pesquisadora, doutora pela USP com tese relacionada a amadorismo no cinema nacional, trabalha com a recuperação de filmes analógicos e foi curadora do Curta8, Festival Internacional de Cinema Super 8 de Curitiba e também do Cine OP – Mostra de Cinema de Ouro Preto. Em Tiradentes, a Tribuna conversou com a Lila Foster sobre seu papel enquanto mulher e curadora, a elaboração da temática deste ano e as tendências da produção cinematográfica brasileira.

Tribuna – Pela primeira vez na Mostra de Tiradentes assumindo a seleção dos longas-metragens, o que de novo te despertou sobre o processo de curadoria?
Lila Foster – O curta é um oceano de propostas, enfoques, formatos, lugares, regiões. O gesto de fazer um longa acaba apontando alguns padrões. São sempre filmes mais narrativos, independentemente de serem mais experimentais ou não. Nessa perspectiva, ao lidar com os longas, a gente fica imbuído de um desejo de dar conta de um panorama: o que, afinal, une esses filmes? A ideia da temática vem a partir disso: Qual discurso está sendo forjado sobre cinema brasileiro através dos filmes? Pensando em termos de curadoria, quando vamos para os longas, já temos em mente a busca por um diagnóstico, com os curtas talvez isso não seja tão presente.

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– A temática “Chamado Realista”, por mais que vocês a definam, ela parte das obras. É como uma observação que vocês têm dos filmes ao todo, e não o caminho inverso?
– Sim. São quase intuições. Ano passado a gente intuiu a temática, e, de repente, isso se confirmou através dos filmes deste ano. Isso foi muito legal.

– A curadoria acaba sendo, então, um trabalho muito empírico?
– É totalmente empírico, porque a gente lidou com um universo de 160 filmes. Na medida em que você está assistindo, é uma consideração meio indefinida. Naquelas linhas que vão unindo as estrelinhas da conexão, você vê um desenho. Mas é totalmente empírico, não é anterior aos filmes, é no corpo a corpo e na conexão entre eles. Isso é o que eu mais gosto. A gente não seleciona esse filme e aquele filme, uma coisa está amarrada com a outra.

– Como se apontassem para um mesmo desejo estético….
– Ou se contrastam mesmo. Por exemplo, na Mostra Aurora a gente tem narrativas mais naturalistas, mas o “IMO” (2017) cria uma outra ponta. Uma experiência que tem a ver com feminismo, uma questão totalmente urgente e premente, mas ela faz um movimento contrário. Uma espécie de construção poética, simbólica, mas não deixa de estar ali a realidade da violência da experiência feminina, a violência que se passa por ser mulher.

– Ela parte de um surrealismo, de uma fantasia para se chegar em uma concretude muito grande envolvendo todas as mulheres.
– Sim, e tem outro filme muito interessante que trata da questão da maternidade, o “Rebento” (2018), que já é outro tipo de aproximação, com uma linguagem muito mais seca e naturalista. Então é interessante pensar em como os filmes se conectam, não por serem iguais, mas por um puxarem uma coisa diferente atrelado a esse conjunto que estamos querendo pensar.

– Na mesa de debates sobre a temática da Mostra, você falou da importância de terem mulheres na curadoria. Parece que foram muitos anos sempre com mais, ou somente, homens cumprindo esse papel. Este ano observei que as mulheres estão trabalhando em todas as funções. Como você enxerga a maior participação delas nas curadorias dos festivais e o que se transforma a partir daí?
– O fato de eu e Camila estarmos aqui, agora, faz com que essa questão surja. Essas discussões que envolvem o feminismo, o lugar de fala e da representação da mulher permeiam muito o trabalho de curadoria e como vamos lidar com essas demandas, que também são minhas, como mulher. O que é mais bonito nesse movimento, que não é somente das mulheres, porque não podemos mais naturalizar uma mesa só com homens, não podemos mais naturalizar a violência contra a mulher, como ela aparece no cinema, quer dizer, estamos em um momento muito forte de desnaturalizar essas coisas até para nós mesmas. O que antes era um incômodo que guardávamos dentro de nós, de repente a gente pode se manifestar e dizer: “espera aí, isso me incomoda”. E com o Cleber (Eduardo), esse trabalho foi muito legal. A gente teve muita atenção para garantir uma representatividade de mulheres diretoras dentro do corpo de filmes programados, pensar em como a violência contra a mulher aparece, pensar na organização dos debates, em se ter um equilíbrio entre homens e mulheres.

– Dos filmes selecionados para a Mostra Chamado Realista tem algum que você destacaria por ser um bom exemplo relacionado a temática?
– Como estamos apostando muito em pensar essa pluralidade de enfoques, formas e procedimentos, acho que cada um à sua maneira contribui. O “Nóis por nóis” (2017) é muito centrado na vida da juventude periférica. Em Curitiba, você tem esses atores que são pessoas de lá, e, ao final do filme, tem um chamado à resistência muito forte. O “Apto420” (2017) já é um filme engajado na causa da legalização da maconha, mas ele opera com uma outra leveza, com um jogo de depoimentos documentais e uma certa ficcionalização de uma comunidade que se encontra, um grupo de amigos. Faz você parecer que está naquela sala, deitado na rede, em uma conversa muito próxima. O “Arábia” (2017) já tem outra dimensão. É a vida de um trabalhador, sua andança, e a própria experiência do ator sedimenta e constrói esse retrato. O único documentário, “Operações de garantia da lei e da ordem” (2017) é muito calcado em uma pesquisa com telejornal, imagens amadoras de mídias ativistas, um pouco de como se constroem os retratos das manifestações. Ele é todo construído por imagens saqueadas.

– Você acha que hoje, nesse panorama de mundo fragmentado e tudo muito difícil de se classificar, as produções cinematográficas estão indo para um caminho de fronteira? Como se a ficção quisesse trazer o real e o documentário tenha essa a inserção de elementos construídos, pensados como ficcionais?
– Acho que tem filmes que estão nessa fronteira, o que não é algo novo. Você pensar no Eduardo Coutinho, em “Jogo de Cena” (2017), as pessoas estão fabulando sobre a vida dos outros, mas às vezes as falas são delas. Essa dimensão de que mostrar o outro, registrar a vida do outro, ter essa proximidade com o real, é também como a gente fabula a própria vida. Diante da câmera é sempre uma encenação, a questão é: De que modo essa encenação aparece para a a gente? Ela é exposta? O filme “Lembro mais dos Corvos” (2017), que está na aurora este ano, é de uma economia super rígida. É uma entrevista que se passa ao longo da noite, mas essa mulher falando é uma criação sobre a própria vida. Então, quer dizer, se narrar é também se ficcionalizar. O “Fernando” (2017) que está na Mostra Olhos Livres é um caso muito bonito dessa mescla, que, na verdade, não importa se é documentário, se é ficção, é a vida de um artista que você não sabe o quanto dali é ele ou não é ele.

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– Como é o trabalho de curadoria na prática, como se organizar para assistir e analisar um número enorme de filmes?
– São três camadas. Primeiro esse momento de uma intensidade muito grande de você estar vendo os filmes, às vezes três ou quatro longas-metragens em um dia. Em um segundo momento, você vê o filme na tela com o público, mas na nossa cabeça de curador a gente está sempre vendo cada um dentro de um conjunto. É interessante também, porque aqui as pessoas estão vendo uma parte de uma série de outros filmes que chegaram para nós, gostamos, mas não dá para colocar por causa do limite de quantos filmes vão entrar. É um processo bem alucinante. A gente começa em outubro, convive sem parar com esses filmes, assiste, seleciona, escreve sobre cada um, pensa em quem vai debater sobre as produções, organiza as mostras, é um trabalho forte e intenso.

– Quando está nesse mergulho diário, você fica em um estágio de confundir a realidade com as narrativas que assiste?
– Com os curtas sim, os curtas são mais alucinantes. São bilhões de universos. Mesmo dividindo por equipe, no fim você acaba vendo 500, 600 curtas. O longa tem uma outra sedimentação. E é uma responsabilidade muito grande, eu fico muito mexida com isso e, ao mesmo tempo, encaro legal, fico feliz em ter essa responsabilidade. Com a quantidade de filmes que recebemos e gostamos, poderíamos montar três mostras diferentes e todas acho que seriam interessantes.

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