Conhece a história dos monumentos de JF? Especialistas discutem a relevância das nossas estátuas e bustos

O que dizem nossas estátuas? Criador do esperanto, escoteiro lendário, Princesa Isabel, empresários, políticos e religiosos estão entre os homenageados nas estátuas e bustos de Juiz de Fora, monumentos que ganham atenção no momento em que diferentes países questionam seus tributos a personagens contraditórios


Por Mauro Morais

21/06/2020 às 06h55


Estátua em tamanho real do jovem escoteiro Caio Viana Martins é uma das curiosas esculturas que se tornaram parte da paisagem do Parque Halfeld, praça com o maior número de monumentos na cidade (Foto: Fernando Priamo)

Caio Viana Martins tinha 14 anos quando ingressou no Grupo de Escoteiros Afonso Arinos, em Belo Horizonte, para onde havia se mudado seis anos antes. Cinco meses depois de completar 15 anos, em 1938, o jovem integrou a excursão que levaria o grupo até São Paulo. A viagem era de trem, na primeira classe. Na madrugada, entre as estações Sítio e João Aires, na altura do município de Antônio Carlos, o trem de passageiros se chocou contra um cargueiro que vinha na direção contrária. Dois dos 25 escoteiros morreram na hora. Outros se feriram gravemente. Monitor da Patrulha Lobo, Caio ajudou a fazer fogueiras para melhor visualizar as vítimas e a construir macas artesanais. Quando a equipe de socorro chegou ao local, cinco horas mais tarde, não havia macas para todos, e o jovem, mesmo sentindo dores, recusou-se a ocupar uma delas. “Um escoteiro caminha com as próprias pernas”, disse, e seguiu andando rumo a Barbacena. Caio percorreu mais de 20km a pé até chegar a um hotel, onde passou mal e foi levado a um hospital próximo. Sofria de uma silenciosa hemorragia que o calou horas depois, no dia 20 de dezembro daquele já distante 1938.

Passados exatos seis anos do acidente, o Grupo de Escoteiros Caiuás do Instituto Granbery financiou a instalação de uma estátua do jovem Caio, em tamanho real, no centro do Parque Halfeld. O monumento, que fica de costas para a Igreja Metodista, divide espaço com outros tantos bustos e estátuas na mesma praça e na cidade. De acordo com o levantamento realizado pelo arquiteto e pesquisador Fabrício Teixeira Viana, Juiz de Fora possui, atualmente, 44 monumentos entre bustos, estátuas, painéis e esculturas. Metade deles foi instalada nas cinco primeiras décadas do século XX, como o que homenageia Caio. Em dois processos, de 2000 e 2005, 31 deles foram tombados pelo município. Num momento em que diferentes países do globo questionam seus monumentos, com ataques a estátuas como a do Padre Antônio Vieira, destruída em Portugal, e a de Cristóvão Colombo, decapitada nos Estados Unidos, o que contam as homenagens feitas em Juiz de Fora?

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“Essa produção começa com a construção do seu primeiro monumento, o obelisco em comemoração ao início das obras de saneamento da cidade, em 1894, e se estende até os dias de hoje, com a produção de arte pública contemporânea. Nessa caminhada temporal, podemos observar a produção de inúmeros bustos que dão destaque a muitas personalidades na esfera municipal (como Henrique Halfeld e Mariano Procópio) e também de grandes nomes da história política nacional (como Getúlio Vargas e, mais recentemente, Itamar Franco)”, pontua Viana, explicando que a cidade é “a sobreposição de diversas camadas temporais, contando com variados suportes e tipos de linguagem” que auxiliam na formação da memória coletiva e da história urbana. “Acredito que essa diversidade de escolhas em se homenagear diferentes personalidades reflete o desenvolvimento de uma sociedade plural. Além disso indica qual personalidade teve destaque em um dado momento da história da cidade”, afirma ele, referindo-se a uma multiplicidade que reúne num mesmo espaço, como o Parque Halfeld, políticos locais, poetas e o escoteiro Caio Martins.

Evento nos anos 1970, do então prefeito Itamar Franco, ao redor do busto em reverência à Henrique Halfeld, no parque que também leva o nome do engenheiro alemão. (Acervo Blog Maurício Resgatando o Passado)

Em posição de destaque no principal parque da cidade, diante da Avenida Rio Branco, está o busto do engenheiro alemão Henrique Halfeld, que, segundo alguns historiadores, é tratado como o fundador de Juiz de Fora. Do outro lado, em mesma posição, está a estátua do ex-prefeito e pecuarista Procópio Teixeira. Antiga sede da Biblioteca Municipal, o espaço ostenta quatro bustos de poetas, do português Camões, do carioca Machado de Assis, do mineiro Belmiro Braga e do juiz-forano Oscar da Gama. Segundo a pesquisa elaborada por Viana, que resultou em sua dissertação de mestrado intitulada “Monumentos, esculturas e espaço público: a imaginária urbana em Juiz de Fora/MG (1906-2016)”, a maioria dos monumentos está localizada na região central, fato que se deve, principalmente, à formação e expansão da cidade. “Acredito que atualmente as políticas públicas podem e devem olhar cada vez mais para os espaços públicos em sua totalidade: partindo da região central (já tão rica de elementos) até as áreas mais periféricas que ainda não foram contempladas com um monumento ou arte pública. Tais elementos têm a capacidade de se integrar à história de uma localidade e de virar marcos de referência em sua paisagem e, portanto, devem estar ao alcance de todos”, defende.

‘São tantos, em tantos lugares, que não os vemos mais’

Da imagem de pacificador ao tratamento de militar que por onde passa fica a dor, a Estação Primeira de Mangueira, no ano passado, quando levou para a avenida a “história que a história não conta”, discutiu a atuação do Duque de Caxias numa alegoria que o trazia retratado à frente de um livro com a seguinte inscrição: “Sua estratégia era simples: para as elites, negociação; para os trabalhadores, bala de canhão. Não era paz que ele levava”. Patrono do Exército Brasileiro, o “Duque de Ferro” é homenageado em Juiz de Fora nomeando uma rua no Poço Rico, uma escola no Centro, uma corrida de rua e uma praça no Bairro Araújo, onde fica seu busto. Outra figura controversa foi reverenciada em 1959 com uma estátua logo no início da avenida que leva seu nome, Getúlio Vargas. “Getúlio contradição Dornelles Vargas. Este é seu nome. A historiografia (sobretudo a carioca) ainda o prestigia muito, mas ainda não deu conta de dirimir todas as nuances desse personagem multifacetado. A historiografia paulista, por exemplo, é menos condescendente com esse personagem, e isso a própria história constatou e construiu. Há um lastro histórico nessa negatividade paulista sobre a figura de Vargas”, avalia o professor do departamento de história da UFJF Rodrigo Christofoletti, que ministra disciplinas de patrimônio cultural na instituição.

Estátua de Getúlio Vargas, no Largo do Riachuelo, no início da avenida que leva seu nome, é uma das homenagens a personagens controversos da história. (Foto: Fernando Priamo)

O desenvolvimento e a valorização de políticas de preservação cultural, segundo o arquiteto e pesquisador Fabrício Teixeira Viana, ampliaram o debate acerca da instalação, localização e preservação de monumentos na cidade. Representativa disso foi a fixação do marco de conclusão das obras da rede tronco-central, reconhecido como “Chuveirão”, na Avenida Itamar Franco, em 2002, e sua retirada na década seguinte, após diversas críticas. Em seu lugar foi fixado o busto de Itamar Franco, juiz-forano que se tornou presidente do Brasil de 1992 a 1995. “Acredito que uma política ampliada de educação patrimonial seria o primeiro passo para que a sociedade juiz-forana pudesse entender um pouco mais de sua trajetória e, com isso, se apropriar de fato de seus espaços e elementos, a fim de preservá-los melhor”, pontua, defendendo que a contemporaneidade, com os grafites e performances como “Ex-votos” (com penas de gesso sobre o Calçadão), permitem que Juiz de Fora estabeleça uma arte pública mais plural. “A arte pública atual pode (e deve) ser uma boa resposta (e, por que não, questionamento) da sociedade com relação a quais rumos novos tomar.”

Para Christofoletti, pesquisador do Laboratório de Patrimônio da UFJF (Lapa) e colaborador do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM) da Universidade de Letras do Porto, “os monumentos existem para lembrar. E quase sempre são gatilhos para uma lembrança seletiva, e não raro, de grupos humanos dominantes, seja cultural, econômico ou politicamente”. Tomando o historiador francês Jacques Le Goff, com sua ideia de documento/monumento, e o escritor austríaco Robert Musil, com suas noções acerca dos monumentos invisíveis, o professor chama atenção para um fenômeno próprio do convívio com esses objetos urbanos: “São tantos, em tantos lugares, que não os vemos mais. Naturalizamos e não damos a devida atenção ao que representam ou representaram”. Quais dos personagens retratados em bustos e estátuas em Juiz de Fora conhecemos? Indiscutível, portanto, o fato de que tais homenagens são, segundo Christofoletti, constituídas de uma densidade que responde a realidades de outros tempos. “Claro que essa percepção histórica de que só se celebram nomes de uma certa elite ainda é muito presente. E é uma dádiva dos dias de hoje podermos olhar para trás e vermos isso. Agora, é claro e notório que a narrativa construída na cidade foi a de uns grupos em detrimento de outros.”

No Bairro Araújo, ao lado da Praça CEU: Busto de Duque de Caxias, personagem controverso segundo a historiografia recente, é um dos poucos instalados na Zona Norte da cidade. (Foto: Fernando Priamo)

‘Há formas mais inteligentes de mudar a história sem apagá-la’

Há exatos cinco anos, o artista visual Adauto Venturi instalou sua última obra do projeto “Desnudamento de ícones”, que levou seis grandes esculturas em metal à praças da cidade. “Ex-escravo louvando aos céus pela sua libertação”, fixada no canteiro que fronteia o Parque da Lajinha, fazia referência ao relevo localizado logo abaixo do busto da Princesa Isabel no parque do Museu Mariano Procópio. Conforme o arquiteto e pesquisador Fabrício Teixeira Viana, trata-se de um exemplar de monumento que exerce o debate de narrativas do passado, justamente o que os movimentos ao redor do mundo cobram ao derrubar ou danificar estátuas. “Sabemos que a abolição da escravatura foi um momento de muita importância na história nacional (e que sempre vale ser relembrado!), mas também sempre nos traz a reflexão sobre o que foi conquistado a partir de então e o que ainda falta ser conquistado no tocante à igualdade racial. Essa é uma das máximas da produção de arte pública que deve ser enaltecida: arte que questiona, que nos intriga e que, por consequência, nos transforma”, observa o estudioso, certo de que Juiz de Fora não possui monumentos em alerta de ameaça quanto às narrativas ou discursos que ostentam ou escondem.


Busto de Itamar Franco, na avenida renomeada em sua homenagem, é um dos mais recentes monumentos de Juiz de Fora, que nas últimas décadas fixou poucas esculturas do tipo no espaço urbano. (Foto: Fernando Priamo)

“Penso que a efeméride faz parte da dinâmica de vida humana”, sugere o professor Rodrigo Christofoletti. “Faz parte rememorar os feitos grandiosos ou compreendidos como tal. Não sou pela chave do moralismo que nega a importância dos bustos, no limite, dos gatilhos de memória, mas há de se repensar, sem dúvida, os parâmetros que a manutenção das mesmas narrativas trazem para a realidade do presente”, diz. “O que está havendo nos dias atuais com essa onda iconoclasta (de destruição de estátuas do passado) exige dos historiadores do presente e das pessoas em geral que repensemos não só a representatividade, bem como os porquês das efemérides. Não sou definitivamente favorável à destruição física de lugares de memória. Penso que isso é uma forma equivocada de supravalorizar uma narrativa em detrimento do questionamento. Há formas mais inteligentes de mudar a história sem apagá-la. Museus e placas reparadoras ou explicativas são apenas duas delas.”

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Para o professor do Departamento de História da UFJF, conselheiro da Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico de Juiz de Fora (Comppac) desde 2019, não é porque um monumento não representa mais a sociedade atual que deve desaparecer. O debate, segundo ele, deve ser público acerca dos motivos que levaram às homenagens. E o mesmo vale para a toponímia (nomes dos lugares), questão já antiga na cidade em relação às ruas com nomes de militares que se tornaram reconhecidos por atuarem durante a ditadura militar. “Toponímia é o tipo de coisa que muda conforme o sabor político e histórico”, comenta, para logo concluir: “Da mesma forma que, com os monumentos, penso que passar borracha na história é bem complicado. Antes da mudança de nome é preciso vir um debate de esclarecimento do que era e porque deve, se é que deve, ser mudado. Isso provoca relações sobre memória e esquecimento, porque não há seleção sem descartes.”

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