Construir quando tudo é devastação

Saiba como surgiu o novo livro de Daniela Arbex, “Todo dia a mesma noite”, sobre a tragédia na Boate Kiss, que fez 242 vítimas fatais e mudou a história da gaúcha Santa Maria. Conheça um trecho do primeiro capítulo


Por Mauro Morais

21/01/2018 às 07h00- Atualizada 22/01/2018 às 12h58

(Foto: Fernando Priamo)

“Bom dia, quando você chegar aqui na Tribuna de Minas vou te passar uma pauta que eu acho que daria um bom tema para um livro. Abraços.” Às 11h01 de 12 de maio de 2016 a jornalista e escritora Daniela Arbex recebeu a mensagem, via Facebook, do radialista Marcos Moreno, à época no elenco da Rádio CBN Juiz de Fora, também, do Grupo Solar de Comunicação. “Estava no meio do processo de apuração quando o (Marcos) Moreno pediu para falar comigo, com urgência. Cheguei ao trabalho, e ele me disse que que tinha conhecido uma enfermeira de Santa Maria, pela internet, e que eu precisava contar a história da Kiss. Eu ri e falei: ‘Moreno, em primeiro lugar, Santa Maria é do outro lado do país e, em segundo lugar, todo mundo já contou essa história’. Depois me dei conta de que esse é o nosso preconceito, porque uma história tem várias formas de ser contada”, recorda-se ela, que, em menos de dois anos, vê chegar às prateleiras “Todo dia a mesma noite – A história não contada da Boate Kiss” (240 páginas, Editora Intrínseca).

“Nós jornalistas somos movidos pelo furo, pela vontade de contar pela primeira vez alguma história. Mas erramos ao negligenciar fatos que já foram relatados. Há sempre ângulos que ainda não foram buscados. Até nas histórias que já foram ditas, há coisas que não foram vistas”, defende Daniela que, na insistência do colega, ainda foi colocada ao telefone para falar com a enfermeira. Instigada pela insistência de Moreno, finalmente, a jornalista resolveu procurar familiares de vítimas do incêndio que, há exatos cinco anos, colocou Santa Maria no noticiário internacional, deixando 242 mortos e cerca de 600 feridos. Sua intenção era saber como estavam.

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“Apresentei-me e a primeira mãe que me respondeu disse que as famílias precisavam ser ouvidas. Aquilo me tocou. Queria entender porque ela disse isso, já que a tragédia da Kiss teve tanta visibilidade.” Foi o necessário para que a dor do outro lhe despertasse, mais uma vez, para o trabalho. “Lembro-me de, na primeira viagem a Santa Maria, ao chegar na rodoviária, perguntei a mim mesma: ‘O que eu estou fazendo aqui?!'”

‘Em todas as entrevistas eu chorei’

Na cidade gaúcha, a enfermeira com a qual o radialista Marcos Moreno havia conversado ofereceu à Daniela Arbex suco verde e silêncio. “Ela foi a única pessoa que não quis falar. Hoje percebo que ela foi um instrumento para que o Moreno me procurasse, despertando em mim a urgência para contar essa história”, constata a jornalista e escritora, cujos dois primeiros livros, “Holocausto brasileiro” e “Cova 312”, renderam-lhe mais de 300 mil exemplares vendidos e um documentário na HBO.

Na primeira viagem a Santa Maria, a escritora entrevistou pais e mães, durante 15 dias. Na segunda, profissionais de saúde e mais familiares. Na terceira, conversou com profissionais envolvidos no resgate às vítimas. Na quarta, acompanhou a fotógrafa Marizilda Cruppe, que registrou o presente da cidade, sobreviventes e familiares. Na quinta, por fim, retornou às casas para leituras de trechos. “Foi um momento muito especial.”

Uma construção de confiança. “Diferentemente de tudo o que fiz até aqui, precisei, antes de tudo, estabelecer um relacionamento para ter a oportunidade de observar todos esses familiares com atenção, percebendo, por exemplo, que, com a morte dos filhos, os pais se tornaram melhores amigos como os filhos. Repetiram o comportamento dos filhos, como se pudessem se aproximar deles. A Vitória e a Andrielle foram em um show de uma banda que elas amavam e tiraram uma foto com o vocalista, cada uma beijando de um lado. A Vanda e a Ligiane, as mães, foram no show da mesma banda e fizeram a mesma foto. Isso é como se pudessem viver, um pouco, a vida das filhas”, emociona-se a jornalista.

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“Em todas as entrevistas eu chorei. Lembro-me de chegar numa casa e a mulher dizer: ‘O hotel não te deu o recado, não?! Não quero dar entrevista.’ Eu falei para ela ficar tranquila, que eu não iria forçar. O marido dela falou: ‘De jeito nenhum, pelo menos você entra para tomar café’. Eu já havia tomado. Eles insistiram, e eu entrei. Era uma casa muito simples, e ele estava desempregado. Tinha um pão, apenas. E eles me deram aquele único pão. Comecei a chorar. Foi essa emoção que fez com que sentissem que poderiam conversar comigo. Então, tivemos uma conexão incrível”, recorda-se ela, que lança a obra em Santa Maria, na próxima quinta (25), e participa, no sábado (27), de ato em homenagem às vítimas na praça da cidade. No dia 5 de fevereiro, às 19h, autografa em Juiz de Fora. “Foi um exercício enorme, uma aprendizagem do fazer jornalístico e da forma de se relacionar com o outro.”

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