O mundo dentro da casa


Por Nara Vidal

19/04/2020 às 06h55

Venho pensando em como seria se tivesse que obedecer ao confinamento quando eu mesma era criança e a internet não existia. Sim, porque lá no fim da década de setenta e na década de oitenta, eu ainda escrevia cartas, usava potes de iogurte e latas com barbante para fazer telefones e falar com a minha amiga Bete que morava do lado da casa da minha avó.

Aí, eu penso nas crianças que são inquietas por dentro, tal como eu fui. Não tinha tanto interesse em pular, correr, mas pensar e imaginar eram exercícios que eu praticava enquanto estivesse acordada. Talvez já me acompanhasse uma relativa melancolia que nunca me fez mal, mas me impulsionou a imaginar e até a escrever. Não é possível ser escritor e satisfeito ao mesmo tempo. A gente escreve a partir de fragmentos, cacos espalhados no chão, incômodos e casos não resolvidos. A insatisfação é a nossa matéria prima.

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Este não é um texto saudosista, no entanto. Incomodo-me bastante com a ideia de que o bom está lá no passado e que infância foi mesmo aquela que se viveu sem tecnologia e comunicação virtual. Se o carrinho de rolimã ficou na memória afetiva, um jogo do Minecraft também ficará. É preciso entender que saímos do lugar, ainda bem!

Mas há caminhos de volta, para quando o ar nos falta ao ponto de sufocar e embaralhar a lucidez. Há coisas que se salvam com o tempo, mas não são muitas. Os anos, as raivas, a indiferença e as prioridades corroem o cerne das pistas que nos trouxeram até aqui. Ao olharmos para trás já não é possível voltar. Algumas coisas sem identificação, no entanto, permanecem incólumes. Na tentativa de nomeá-las, me coloco à frente das estantes da sala e do quarto dos meus pais e da escrivaninha que nunca soube se era do pai ou da mãe. O que se salvou do fogo do tempo foram um elefante branco de porcelana, a TV que dava choque, o telefone de discar, as enciclopédias, os livros, os discos de Chico, Milton, Nara e Elis, minha raríssima coleção de lápis de 24 cores preenchendo um jardim mimeografado intitulado dever de casa. “O elefante branco é da Índia”. Espalhavam-se esses boatos na minha casa como o feijão esparramado na peneira. Na escrivaninha, um vidrinho de petróleo, uma caneca do festival de chopp 1977, os postais da Lapônia (como isso veio parar aqui?) as tartarugas feitas de pedrinhas pintadas pela madrinha do Rio de Janeiro e uma concha. “A concha é mesmo do mar”, dizia o boato. Para ouvidos de Minas isso soava de um espanto tão grande quanto o elefante da Índia. Das pistas que não se dissolveram com o musgo do tempo, a vontade sair do lugar. Contemplava os livros, os textos ainda tão difíceis, as fotos do que existia para além de Guarani. Gostava de olhar os livros enquanto escutava o mar dentro da concha. Pensava em fugir, se não me falha a memória. No alto do quintal do vizinho, as mangueiras e bananeiras atrapalhavam a visão do que havia depois daquela fronteira. Era sempre mais Guarani depois da fronteira. Como era grande Guarani! Não acabava nunca.

Uma vez por semana cortava aquele azul quente da cidade um avião. Eu subia na janela, chegava a gritar que me levassem embora ou que voltassem para me buscar. Guarani não acabava nunca porque quando eu abria os olhos depois de ouvir o que dizia a concha tinha que colocá-la no lugar, guardada na gaveta para não fazer bagunça.

Querido leitor, por favor, por amor, fique me casa se você tiver um teto. Não encontre amigos, não encontre familiares. Isole-se, encontre uma concha aí em Minas, se possível sonhe com fronteiras e faça planos de abraços e beijos. Isso tudo será útil se estivermos vivos logo ali no futuro.

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