Tribuna conversa com Caetano Veloso sobre show que faz com os filhos em JF

Repertório de ‘Ofertório’, que acontece nesta sexta e sábado no Cine-Theatro Central, reúne canções dos quatro músicos


Por Júlia Pessôa

19/04/2018 às 13h03- Atualizada 19/04/2018 às 16h08

Zeca, Caetano, Moreno e Tom se reúnem no show “Ofertório” , no Cine-Theatro Central ( Foto: Hércules Rakauskas)

 

Nasci no dia 7 de agosto de 1985. Nunca soube muito ou procurei me inteirar sobre astrologia, mas sempre ouvi que leoninos e leoninas não costumam passar em branco, e a cada sacudida de suas jubas, o mundo parece tomar cores e rumos diferentes. Se é verdade para mim, jamais saberei, pois me sinto pequena demais para causar qualquer mínimo efeito nesta vastidão de planeta. O que de fato sei é que, seja pelos astros ou não, no mesmo dia 7 de agosto, mas de 1942, em Santo Amaro (BA), nascia um “leãozinho” que encantou e encanta multidões pelo país e pelo mundo, transformando-o, irremediavelmente: Caetano Veloso, a quem sempre ouvi, desde criança, e de quem me considero, muito pueril, orgulhosa e pretensiosamente, uma espécie de gêmea astral – mesmo do alto de minha ignorância astrológica.

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Nesta sexta e sábado, 20 e 21 – foi preciso abrir uma segunda sessão, devido aos ingressos rapidamente esgotados -, Caetano aporta em Juiz de Fora com as crias, seus filhos Moreno, Zeca e Tom, no show “Ofertório”, em que os quatro músicos realizam um encontro de gerações e repertórios no palco do Cine-Theatro Central. Sem esconder o orgulho de pai, Caetano derrete-se ao falar de seus “meninos” (Moreno tem 44; Zeca, 25; e Tom, 20), observando em cada um traços de si mesmo. “Me lembro de Moreno cantando no fim da adolescência e eu ouvindo meu timbre ali. Também reencontro meu timbre na voz de Tom. A de Zeca é a mais diferente das nossas. Mas quando vi o filme ‘Uma noite em 67’, olhava imagens minhas e via Zeca, andando, sorrindo, falando. Tanto Zeca quanto Tom têm traços meus, que se afirmam, evanescem e retornam ao longo do tempo. Moreno sempre teve um tipo físico parecido com o da família da mãe dele. Mas tem o olhar dos Veloso, muito da minha voz e um núcleo cultural do recôncavo muito entranhado: nasceu com ele. No palco, entre eles, me sinto diferente de todos. Acho que é porque sou velho e eles são garotos. O sentimento é de profunda felicidade. Por esses tempos, acho sem sentido quando subo a um palco sem eles.”

Caetano e Moreno em momento de descontração e sintonia no palco ( Foto: Ney Coelho)

Moreno, o primogênito, também não se furta em falar, em voz sereníssima que realmente remete à do pai, sobre a emoção de poder realizar a turnê de “Ofertório”, mas desconfia – ou reconhece – que o show seja ainda mais carregado de significados para Caetano. “Acho que esse é um sonho de meu pai, realizar esse show ao lado dos três filhos, que também têm um pé na musicalidade. Também já acompanhei meus filhos no palco (claro que não profissionalmente, porque são crianças), e é uma delícia. Somos pais corujas e nos alegramos muito com as conquistas dos nossos filhos. Também me alegro muito pelas conquistas de meus irmãos, mas imagino que para meu pai isso seja ainda maior neste projeto”, diz ele.

“Essa turnê mostra muito claramente que nós somos uma família mesmo, não apenas uma família musical, mas uma família mesmo. Isso fica muito evidente no palco e também para quem assiste, e é muito bonito sentir isso e ao mesmo tempo estar fazendo música um do lado do outro”

Moreno Veloso

‘O que cada um gostaria de ver o outro cantando’

Ainda falando sobre a simbiose musical e familiar, Caetano descreve o repertório do show, que inclui canções de diversos momentos de sua carreira, como a icônica “Alegria, alegria” (1967), “Trem das Cores” (1982), a poética “Oração ao tempo” (1979), a baianíssima “Reconvexo” (1989), escrita para a irmã Maria Bethânia, e a pungente “Não me arrependo” (2006), entre outras, além de composições de outros artistas. Também há canções de cada um dos filhos, como a sensível “Todo homem”, de Zeca; a tocante “Um só lugar”, parceria de Tom com Cézar Mendes; e a intimista “De tentar voltar”, de Moreno, só para citar algumas que vêm compondo o setlist dos shows pelo Brasil afora. “Todas as canções têm ligação familiar: ou falam disso ou entraram na lista a pedido de um dos meninos. Há também, claro, nossas parcerias. Fiz músicas com Moreno, com Tom e com Zeca”, diz o pai, que destaca alguns de seus momentos preferidos, embora sejam variantes a cada apresentação. “Ah, são muitos! Depende do dia. Desde o começo, Zeca cantando “Todo homem” tem sido uma experiência especial para todos nós. Adoro ouvir Tom e Moreno cantando “Um só lugar”, e a passagem de ‘Ofertório’ para ‘Reconvexo’.”

Segundo Moreno, a elaboração do repertório e a própria interação entre os músicos partiu de escolhas musicais afetivas. “Partimos do princípio que foi o que cada um gostaria de ver o outro cantando. Então, a gente fica curioso todo dia para ver como tal música vai sair, porque queríamos ver o outro cantando. Acontece comigo por exemplo. Se vou cantar algo meu, fico curioso para ver como meu pai e meus irmãos vão receber aquela música naquele dia. Ficamos nos olhando, nos observando, e isso se tornando público. Parece que fica bonito, não sei (risos).” (“Fica sim, Moreno”, penso enquanto escrevo estas linhas e ouço a playlist do show no Spotify.)

Como patriarca da família no palco, Caetano enxerga peculiariades musicais em cada um dos filhos. “Moreno é o sábio da música como reencontro da pureza infantil, da luz da vida: parte de um conhecimento matemático. Zeca é a necessidade de encarar a complexidade das situações existenciais – e chega a canções concentradas e breves. Tom é lacônico e direto. Com isso, faz canções mais longas, com caminhos harmônicos mais labirínticos. Cada um é um encantamento diferente”. Do alto de seus 75 anos, com quase 50 álbuns lançados, o artista fala sobre o aprendizado constante na convivência com a prole.

“Aprendo muito. E desde que Moreno era criança. As escolhas, as observações espontâneas, as ideias de composição, tudo neles traz coisas para meu acervo. Ouvir Gentle Giant ou os Mutantes progressivos com Tom dá novo sentido à música desses artistas – e às tendências do meu gosto. Ouvir Aracy de Almeida, Kanye West, Jorge Veiga ou Prince com Zeca me dá vontade de chorar. Conversar com Moreno sobre Gil transforma a perspectiva musical e estética de minha vida”

Caetano Veloso

Repertório inclui parcerias e composições de todos os Veloso, que fazem participações nas obras um do outro durante o show ( Foto: Mooviement)

‘Vivemos tempos complicados. Brasil e mundo e tudo’

Como sua notória relação histórica com os aspectos políticos e sociais do país ao longo de sua trajetória permitia que eu esperasse, Caetano não se ausentou de comentar o cenário atual do Brasil (e do mundo) e seu papel como artista no contexto. “Vivemos tempos complicados. Brasil e mundo e tudo. Nada fácil mesmo. Fazia mais de dois anos que eu não compunha nada (exceto o “Alexandrino” do nosso show, que é uma brincadeira com o funk só pra levar Tom a dançar passinho: praticamente não houve trabalho de composição; se há algum, é a programação feita por Zeca, que sempre capricha). Mas outro dia Bethânia me pediu uma música para ela e Zeca Pagodinho cantarem. Fiz, porque , como diz Chico, ‘o que Bethânia e Milton mandam a gente obedece’. E fiquei feliz de ela e ele gostarem. Curiosamente, há uma referência otimista ao Brasil. Saiu assim, sem eu poder reprimir. Bem, fiz uma letra para uma música de Tom, composta para nosso show, mas o clima político não nos deixaria em paz se a tivéssemos lançado. Fica guardada, em segredo, esperando.”

Ambos, Caetano e Moreno, na entrevista, falam sobe o papel da arte no atual contexto político-social brasileiro (Foto: Hercules Arauskas)

Se nas composições o artista tem procurado ser comedido em busca de paz de espírito, suas palavras certeiras e seguras não escondem seus posicionamentos políticos – como sempre -, mesmo em tempos de tanto ódio e linchamento virtual. “Acho que Lula deveria estar livre e concorrer à eleição. Meu candidato é Ciro porque, embora eu adore Marina, ele é politicamente mais sólido e representa realmente uma alternativa à superstição neoliberal. Acho até que é por isso que a imprensa o enterra tanto, finge que ele está muito menos no páreo do que de fato está. Estou pagando pra ver um neodesenvolvimentismo experimentalista e audaz. Não desprezo a união de Marina com liberais originais como Giannetti: os desenvolvimentistas são supostos opositores das causas do meio ambiente e dos povos da floresta. Mas eu acho que, bem sucedidos, eles poderão fazer mais por esses temas do que se imagina. Tudo é complicado num mundo complicado. A América Latina é campeã de assassinatos violentos. Precisamos superar isso. Para começar, não esquecer Marielle. E sentir o valor que têm as palavras do ministro Celso de Melo a respeito do tweet do comandante do Exército na véspera do julgamento do habeas corpus de Lula”, diz ele, sobre a fala do ministro, que criticou a manifestação de generais via Twitter às vésperas do julgamento do ex-presidente no Supremo Tribunal Federal (STF). “Isso tudo é inaceitável. (…) Insurgências de natureza pretoriana desrespeitam o poder civil.” Palavras que certamente remetem, para Caetano, aos protestos musicais dos anos de chumbo.

Menos visceral em sua crítica, mas não menos enfático, Moreno acredita que é hora, mais do que nunca, de fazer pulsar a arte e a cultura. “O momento brasileiro é muito difícil, estranho, tenso e complicado. E muito ruim. Nessa hora, justamente nessa hora, tem que ter muita presença de espírito, inteligência força, graça, suingue e jeito. Tudo isso está relacionado à cultura, à arte que nos propicia tudo isso. Precisamos muito de arte agora, de todas as formas, cada vez mais forte.”

‘No meu lugar, no meu tempo’

Para Moreno, filho de Caetano, sobrinho de Bethânia e afilhado de Gal Costa, entre muitas referências que literalmente vieram de berço, seu destino na música sempre esteve, de certa forma, traçado. Ou não (como poderia dizer o pai). “Acho que estava definido mesmo. Estava e não estava, igual a todo mundo, porque a gente vai fazendo a nossa história, embora o destino sempre esteja aí. Mas eu nasci no dia do músico, dia 22 de novembro, e nessa família extremamente musical, tudo isso já aponta para uma vida dentro dessa música. Mas a verdade é que eu sou apaixonado, e poderia não ser. Não sei se seria outra coisa, mas ser músico me deixa extremamente feliz e é a partir disso que se desenrola minha história pessoal, claro”, filosofa ele.

Para Caetano, perdurar relevante como artista por tantas gerações “é normal” ( Foto: Theodora Duvivier)

Com longa estrada como referência na música nacional, atravessando gerações e integrando diferentes momentos históricos da cultura do país, Caetano minimiza o fato. “Muitos artistas de minha idade perduram no interesse de grandes plateias. O deslumbrante show de Chico Buarque que vi no Rio tinha um público cheio de jovens e maduros e coroas. Jovens aos montes. Muitos colegas, no mundo, têm. Fazer o show com meus filhos é outra coisa. Jovens na plateia eu via no ‘Cê’, no ‘Abraçaço’, no ‘Zii e Zie’. E antes. Com os filhos, vêm também amigos de amigos deles. Caymmi e Ary Barroso foram importantes e presentes até a morte. Frank Sinatra e Ray Charles, idem. Para só falar de uns poucos. Vi os Rolling Stones no Maracanã e Mick Jagger estava uma chama acesa para uma imensa multidão de jovens. Acho normal.”

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Uma das cabeças do Tropicalismo, Caê (a esta altura do texto, já me sinto abusada o suficiente para escrever assim) diz não observar a emergência de qualquer outro movimento musical impactante no Brasil contemporâneo. “Nem procuro isso. Em alguns momentos, dizíamos que o tropicalismo era um movimento para acabar com todos os movimentos. Mas, claro, isso era uma aresta da cabeça. Ouço funk, axé e sertanejo, mas também – talvez principalmente – Thiago Amud e um novo disco (ainda não lançado) de Tuzé Abreu, um garoto e um velho, ambos livres, exigentes, experimentando com rigor e coragem.” Já registrado em vídeos que viralizaram na internet cantando funk e tendo feito brincadeiras musicais que remetem ao gênero, Caetano, antenadíssimo com a atualidade, diz que o fenômeno o “atrai e fascina”.

“Faço imitações de funk como homenagem. Adoro a produção inventiva dos funkeiros do Rio, cujas origens estão retratadas no livro de Hermano Viana, e também a mudança que o gênero foi sofrendo em São Paulo, onde as levadas ficaram mais vazias, menos maculelê, e mais experimentais. Gosto de ouvir a FM O Dia de tarde, com funk, e de noite, com samba e/ou sertanejo. Me sinto no meu lugar, no meu tempo”

Caetano Veloso

‘Caetano estaciona carro no Leblon’
Sete anos atrás, um portal publicou uma foto e a seguinte manchete: “Caetano estaciona carro no Leblon nesta quinta-feira”. O conteúdo nada trazia, além de fotos do artista atravessando a rua e existindo em um dia comum no Rio de Janeiro, mas a banalidade que ganhou ares de notícia bastou para que a frase virasse piada na internet, que perdura até os dias de hoje. Eu, como devota infame e inveterada de bobagens como esta, jamais perderia a oportunidade de perguntar sobre o Caetano fora dos palcos, das turnês e das vagas de estacionamento nas ruas do bairro carioca. “Leio jornais e livros; converso; vejo noticiários e sitcoms na TV; fico horas em aeroportos e aviões; vejo as pessoas de quem gosto; no verão, tomo sol, principalmente na Bahia; vou ao cinema sempre que posso; a shows e a peças de teatro também; toco muito menos violão do que tocava antigamente e me prometo passar a tocar mais do que nunca; fico horas na cama esperando adormecer. Só estaciono no Leblon porque moro lá e também vou a alguns restaurantes que ficam lá.”

 

Caetano, Moreno, Zeca e Tom Veloso – “Ofertório”

Dias 20 e 21 de abril, às 21h30 (abertura da casa às 20h30)

Cine- Theatro Central

 

 

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