Profissionais do livro defendem maior participação feminina no mercado e no processo editorial
Flexão de gênero e número: para editoras e escritoras, maior participação na cadeia do livro é passo importante para que literatura brasileira, marcada pela hegemonia masculina, branca e heterossexual reflita diversidade da contemporaneidade
Penélope, na mitologia grega, vive a esperar o marido Ulisses regressar da Guerra de Tróia. Enquanto isso, tece e desfia um sudário, adiando a orientação do pai para que se casasse novamente. Ao longo da história, a narrativa encontrou novo contornos. Na representação do feminino, Penélope encontrou outras mulheres, novas mulheres, e foi sendo repensada e recriada séculos a fio. “Penélope talvez seja a grande personagem arquetípica feminina na literatura, retomada, desfeita e refeita por tantos escritores, de James Joyce, em ‘Ulysses’, a vários poetas brasileiros como Orides Fontela até os contemporâneos que escolho para estabelecer um diálogo”, avalia a poeta Mônica de Aquino, que retoma Penélope em seu “Linha, labirinto”, livro que chega este mês às livrarias virtuais e físicas pela Edições Macondo.
Fiando a Penélope de agora e desfiando a Penélope do passado, Mônica recupera o lugar da mulher na sociedade e, também, na literatura. Reunindo trabalhos (ensaios, poemas, pinturas e desenhos) de outros artistas, apropria-se de outros olhares constituindo sua própria trama, como a revelar o exercício coletivo do pensador, em especial, do escritor, em suas releituras, reescritas e refazimentos. “Multiplicam-se os novelos da trama, a criação sempre feita a partir também de fios alheios, em que na base da escrita estão não só as experiências e certo olhar particular sobre elas, mas a soma das leituras, as escolhas afetivas e estéticas que convertem a escrita em um percurso em palimpsesto, no qual fazer é sempre refazer e, desta forma, também desfazer para a partir de novas escolhas, criar também o novo”, conceitua a poeta.
O exercício de pensar e repensar a mulher, latente em “Linha, labirinto”, também está em lançamentos deste mês, sob outras óticas e linguagens, como no livro de memórias “Autobiografia precoce” (Companhia das Letras), de Patrícia Galvão, a Pagu; nos ensaios de “De quem é esta história? Feminismos para os tempos atuais” (Companhia das Letras), da historiadora norte-americana Rebecca Solnit; ou nos escritos diversos de “Sou sua irmã” (Ubu) e nos poemas de “A unicórnia preta” (Relicário), da escritora caribenha-americana Audre Lorde. Também está nos bastidores, nas tramas do processo editorial, ainda dominado pelos homens. “Quando pensamos a história da literatura, encontramos mulheres escritoras. O que percebemos é que faltavam mulheres ocupando os espaços da cadeia de produção do livro”, observa a poeta e editora Anelise Freitas, que lança este mês uma revista virtual do coletivo juiz-forano Capiranhas do Parahybuna, formado por quatro mulheres, todas pesquisadoras, poetas e editoras.
“Acredito que a mulher no mercado editorial e em qualquer outro mercado ainda é muito marginalizada. A ocupação da mulher, ainda, no mercado editorial é muito pequena”, avalia a poeta e editora Natália Agra, que desde 2016 coordena o selo Corsário-Satã ao lado do companheiro e poeta Fabiano Calixto, e nesta semana lança a quinta edição de sua revista “Despacho”, dedicada apenas às mulheres. “É um trabalho feito por mulheres na tentativa de mostrar que é igual aos outros. Ao mesmo tempo, não podemos acreditar nisso, porque, na prática, não existe igualdade. Depois de tanto tempo de luta podemos falar em igualdade? Não! Seguimos na luta.”
‘Hoje a gente consegue tomar os meios de edição’
A literatura brasileira tem gênero, cor, escolaridade e endereço. Segundo uma das mais robustas pesquisas realizadas no país acerca do tema, liderada pela professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília, e publicada no livro “Literatura brasileira contemporânea: um território contestado” (Editora Horizonte), há um perfil claro tanto dos autores quanto dos personagens que ainda hoje chegam às prateleiras. A investigação debruçou-se sobre 258 romances, publicadas entre 1990 e 2004 pelas três maiores casas editoriais do país nesse período: Companhia das Letras, Record e Rocco. Conforme o levantamento, a autoria é masculina (72,7%), branca (93,9%), com escolaridade superior (78,8%) e residente no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais ou Rio Grande do Sul (73,3%). As narrativas, por sua vez, espelham tal conformação: 71,1% dos protagonistas são homens; 81% deles, heterossexuais; 79,8% são brancos; 82,5% têm idade entre 30 e 59 anos; 78,2% estão na vida adulta ou na maturidade. Uma mudança, portanto, deve contemplar a temática e a autoria. E não somente.
“O número de homens publicados é sempre muito maior, mas quando pensamos nas mulheres editoras, e nas ditas minorias, percebemos que é muito flagrante essa diferença no mercado editorial. Temos muito mais mulheres escritoras do que mulheres editoras. E é sintomático. Sempre foi uma questão financeira, porque era caro produzir livros. Hoje a gente consegue tomar esses meios de edição de formas alternativas, que talvez há 30 anos não fossem possíveis”, pontua Marcela Batista, integrante do Capiranhas do Parahybuna. “No fluxo das editoras, as mulheres ocupam, tradicionalmente, os lugares de revisora, preparadora, trabalhos invisibilizados, mas trabalho braçal, que garante a qualidade final do livro. Enquanto a ‘cabeça’ das editoras é ocupada por homens, que tomam decisões e estão nesse lugar de direção. É fundamental que a gente ocupe esse lugar, sendo a cabeça, o coração e os braços da editora”, sugere a mineira de Recreio, formada em Juiz de Fora e radicada no Rio de Janeiro, onde também trabalha com tradução, revisão e preparação de textos para livros didáticos.
Para Fernanda Vivacqua, outra integrante do coletivo, a vivência editorial de publicar e a pesquisa acadêmica fortaleceram a consciência da ausência de mulheres no setor e despertaram o desejo por se fazer presente em todas as etapas. “Não dá para sublimar a questão de gênero neste espaço”, aponta ela, carioca crescida em Juiz de Fora e hoje vivendo em Porto Alegre, onde cursa o doutorado em literatura na UFRGS. “Pensamos a Capiranhas para que fosse um espaço em que nós fôssemos as editoras. E isso influencia nossas decisões editoriais, não porque vamos restringir (a publicação de homens), mas porque estamos mais atentas a essa necessidade de ocupação das mulheres”, resume Laura Assis. “Conhecemos muitas poetas, admiramos, traduzimos, dialogamos, e ter mulheres neste espaço faz toda diferença. Não podemos ficar relegadas a um espacinho que dão para nós. Aqui fazemos tudo, a curadoria, o trabalho manual das plaquetes, vamos editar uma revista, fazemos contato com os autores, selecionamos o que publicar”, detalha a poeta e editora, também professora do Colégio de Aplicação João XXIII.
‘E o que é a literatura masculina? É a dominante?’
“O que é uma poesia de mulheres? É possível se valer de temas, fórmulas e técnicas há milênios ditas como masculinas? É justo considerar que essas coisas sejam apenas masculinas? É preciso tomá-las para si ou recusá-las em busca de algo outro? O mesmo, aliás, também não vale para o mundo?”, indaga o professor de língua e literatura grega na UFRGS Leonardo Antunes no prefácio de “Linha, labirinto”, assegurando que as antigas preposições são habilmente respondidas pela poeta Mônica de Aquino. “Essas perguntas parecem subjazer a todos os poemas deste conjunto, como um labirinto que precisa ser percorrido e desfeito. Porém, em nenhum momento essa dificuldade parece surgir no plano do lavor poético”, afirma, apontando a naturalidade que a própria autora reconhece.
“A literatura há até pouco tempo era feita prioritariamente por homens, como tantos outros aspectos da vida, em uma estrutura patriarcal. Não acho que há uma dicção feminina, o que há é a escrita (como outras produções artísticas) marcada por tudo o que somos _ no meu caso, uma mulher vivendo hoje no Brasil, no século XXI, atravessada pelas conquistas e dramas do meu tempo _ e, mesmo para questioná-los ou romper com eles, vendo/vivendo o mundo a partir desse lugar historicamente determinado”, define a poeta de Belo Horizonte, finalista do Prêmio Jabuti em 2019, na categoria poesia, com “Fundo falso” (Relicário), no qual dedica uma seção à personagem mitológica que, agora, questiona e subverte, “buscando ler o feminino a partir dos dilemas contemporâneos.”
O ideal, segundo a poeta e pesquisadora Anelise Freitas, seria considerar apenas literatura. “Quando criamos categorias, estabelecemos que há um universal – normalmente masculino, hétero e branco – e o resto deve ser categorizado. Escrita feminina, durante muito tempo foi um paliativo, um termo que permitiu a entrada da escrita de mulheres no círculo literário”, sinaliza ela, doutoranda em literatura pela UFJF, além de professora, produtora e revisora. A parceira no Capiranhas, Marcela Batista, concorda e aponta os riscos na conceituação fictícia do que seja o feminino. “É uma construção e várias pessoas podem ser femininas, independentemente de serem mulheres ou não. Qualifica-se um texto de mulheres como feminino e, historicamente, o feminino é o frágil, o incompleto, o que falta e, por isso mesmo, não está no lugar do cânone. Prefiro a expressão literatura de mulheres, que engloba mais e não limita a um qualificador. Se existe feminino, existe o masculino. E o que é a literatura masculina? É a dominante?”, questiona.
‘As editoras menores estão mudando o cenário’
Enumerando uma dezena de editoras comandadas exclusivamente ou não por mulheres, a editora Natália Agra acena para a construção de um novo cenário formado por selos independentes: Alpharrabio, Chão de Feira, Corsário-Satã, É Selo de Língua, Garupa, Luna Parque, Nosotros, Paralelo 13S, Relicário e TremeTerra. “As grandes editoras ainda centralizam o poder nos homens. Uma das importâncias das editoras menores é, justamente, trazer à tona autores que não são reconhecidos pelo grande público. Isso é uma das coisas mais interessantes que tem sido feita. Editoras grandes não se interessam por publicar autores que não sejam conhecidos. Na poesia, são sempre os mesmos nomes. São as menores, portanto, que estão mudando o cenário”, avalia, acentuando que o exercício dos pequenos selos não carrega consigo um efeito mercadológico, como as grandes casas fazem, tratando autores e livros como produtos puramente comerciais.
As novas gerações, segundo a escritora e editora Fernanda Vivacqua, também reivindicam a transformação. “Não acredito que uma jovem que goste de poesia vá querer ler só homens. Mas ela precisa encontrar um campo editorial em que possa ler mulheres. Se for num sarau e só encontrar homens lendo, ainda que ela escreva, vai entender que sua escrita não é publicável. As editoras independentes ajudam nesse processo, porque permitem encontrar com maior facilidade o que, antigamente, era restrito por um mainstream editorial”, acredita ela, que publicou pelo seu Capiranhas do Parahybuna a plaquete “Para os homens que não amam as mulheres”, de 2018, e, no mesmo ano, “Maria Célia”, pela Edições Macondo, o mesmo de “Linha, labirinto” e que, ao longo de seus seis anos, publicou 28 mulheres, o equivalente a 60% dos autores do selo do editor Otávio Campos.
‘Estamos num momento de transição’
Onde estavam as mulheres nos movimentos literários de Juiz de Fora? Onde estão é fácil apontar, já que o presente reserva uma realidade distinta, na qual se inclui a ainda jovem Capiranhas do Parahybuna, criada em 2018. “O feminismo como pauta já foi usado em alguns movimentos para eleger uma única autora, cumprindo uma cota. E todas as outras mulheres? E as produções nas quais essa não era a pauta principal ou que estavam menos explícitas?”, questiona Laura Assis. “Temos que publicar independente disso. A questão do gênero marca a gente da mesma forma como a raça e a orientação sexual, é indissociável. Não importa se eu fale sobre ser mulher, ser negra ou ser lésbica. A partir do momento em que sou isso tudo, minha vivência está no que escrevo. A questão, então, não está no nível temático, mas político”, adverte ela, que pelo próprio selo lançou “Mecânica de nuvens aplicada”, ao lado do livro de Fernanda, e de “Mamafesto – Parte I”, de Anelise Freitas, e de “Caderninho vermelho”, de Marcela Batista.
“É muito poderoso inverter a lógica e ver como funciona quando as mulheres decidem editorialmente, interferindo nos processos da cadeia de produção do livro e lidando com homens autores. Pode ser pedagógico para eles. Apostamos num futuro em que essa não seja mais uma iniciativa necessária”, sugere Fernanda Vivacqua. Ainda que o momento não seja o hoje, os dias que correm reservam sintomáticas viradas, como o recente anúncio da gigante Companhia das Letras, que criou um conjunto de ações para promover a igualdade tanto na gestão do negócio quanto na oferta literária. “Não podemos ter a ilusão de que os direitos estão conquistados para sempre. O que avança pode retroceder. O mercado editorial não está isolado da sociedade, e temos nos defrontado com uma sociedade extremamente misógina e resistente a várias conquistas, como a Lei Maria da Penha. Na nossa micropolítica, no nosso campo de atuação é preciso valorizar o que avançou, e houve avanço, mas mantendo o movimento”, alerta Fernanda. “Como poeta, sinto que de uns tempos para cá as pessoas estão dando mais valor à literatura feita por mulheres. A luta tem sido grande e o resultado tem sido um respeito maior. Não é gratuito. As mulheres estão lutando para serem reconhecidas. E isso é em todo canto”, comenta a poeta e editora Natália Agra. Laura Assis adverte: “Estamos num momento de transição.”