A flor e o espinho pelas ruas O caule As pétalas


Por Mauro Morais

09/10/2016 às 07h00- Atualizada 05/02/2017 às 10h00

WAGNER JÁ virou noite com suas rosas, mas hoje para, no máximo, às 2h, rodando pelos bares da Zona Sul (Olavo Prazeres)

WAGNER JÁ virou noite com suas rosas, mas hoje para, no máximo, às 2h, rodando pelos bares da Zona Sul (Olavo Prazeres)

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De uma família de vendedores ambulantes de rosas, Wagner completa este ano três décadas no ofício

Para manipular flores é preciso ter alguma sensibilidade, confirma Wagner Nonato de Oliveira, 37 anos, homem de muitas emoções, lágrimas fáceis e fala mansa. Mas há de ter alguma coragem também, observa ele. “Minhas mãos são todas furadas de espinho. E tem uns que dão até febre”, conta, mostrando os calos e as marcas que carrega junto das rosas vendidas de pessoa a pessoa, de bar em bar, de rua a rua. “Minha esposa não gosta muito. Reclama que suja a casa e porque, vira e mexe, ela espete o pé, espeta a perna quando senta no sofá. Mas minha filha gosta. E sempre que vê um rosa bonita, pede para ela”, diz, referindo-se à Jussara, com quem é casado há 12 anos e com quem teve, há nove, Ana Clara.

Enquanto a filha estuda e a esposa faz bombons, Wagner faz o que faz há quase 30 anos. “Compro rosas de três em três dias. Elas vêm todas sujas, com espinhos. Tenho que limpar e embalar cada uma. Não tem muita perda. De cada 30 dúzias que compro por semana, perco de 50 a 60 rosas. Nada que dê prejuízo. Vendo todos os dias, vivo do pão nosso de cada dia”, pontua. “No começo a gente comprava do Zé, que fica ali no antigo Cine Excelsior. Na época era até o pai dele quem trabalhava ali. Depois conseguimos fornecedor. Hoje vem direto do produtor de Barbacena.”

A gente, Wagner? A família, responde. E parte das rosas para lembrar dos espinhos. “Comecei a vender flores com 8 anos. Minha mãe ia e levava a gente, eu e meus outros irmãos. A gente queria estar perto dela”, recorda-se, referindo à mulher que já tinha seis filhos adultos de um primeiro casamento e desfazia, àquela altura, a segunda união, que lhe gerou outros seis filhos. “Nós passávamos muito aperto antigamente, já que meu pai se separou dela e era preciso arrumar um jeito de botar o pão dentro de casa. A gente saía e vendia naqueles barzinhos do Manoel Honório, no Centro, mas ainda não vinha para o Alto dos Passos. Naquela época a gente morava de favor numa casa no Parque Guarani”, recorda o homem, pouco a pouco com os olhos cheios d’água.

“Nosso café era água de batata, não tinha pó de café. Era só uma bisnaga grande para seis irmãos. A miséria era muito. Chegamos a ficar na rua quando o pessoal da casa onde a gente morava não deixou mais a gente ficar. Dormimos uma noite na porta da igreja do Bairro Santa Terezinha. Fomos para o Bonfim e lá alugamos um cômodo cheio de ratos e baratas, para nós sete. Assim começamos a vender rosas. Comprávamos meia dúzia, vendíamos e comprávamos uma dúzia. vendíamos de novo e voltávamos e comprávamos duas dúzias. Aí fomos crescendo”, orgulha-se ele, Nonato de Oliveira na identidade, e Flores na identificação do dia a dia. Flores de família.

Quando Maria Helena se viu sozinha e precisando trabalhar, viu nas flores uma forma de ganhar dinheiro, mantendo os filhos por perto. “Ela às vezes fazia faxina, mas sempre vendeu flores. Vendeu até um dia antes de morrer. Tinha um problema de pressão alta e não tomava remédios. Um dia a pressão subiu muito e deu embolia pulmonar. Tinha 69, mas quem via não percebia. Era muito forte, muito animada. Andava tipo uma cigana, com calça legging, saia, flores na cabeça”, conta Wagner, penúltimo dos filhos da mulher morta há seis anos. O trauma, recorda-se, foi o da escassez. O pai, morto em 1994, nunca se ausentou, mas também não dava conta de suprir os filhos. “Ele, que era aposentado do Exército e trabalhava de garçom, quando recebia levava um dinheirinho para ela, mas não dava para nada”, lembra. Maria Helena bem que tentou fazer Wagner escrever outra história. Mas, àquela altura, escrever, o que quer que seja, era o bastante. “Estudava e saía para vender. Era o que dava para pôr na mão: 50, 60 rosas. Quando aprendi a escrever saí do colégio. No primário mesmo. Continuei vendendo rosas. Construímos casa, compramos móveis, demos uma erguida legal vendendo rosas”, aponta, mostrando a escrita que fez com as rosas nos braços. “Tenho dois irmãos meus que também vendiam rosas, o João Paulo e o Wanderson. Os dois têm salão de cabeleireiro, um em Belo Horizonte e outro aqui em Juiz de Fora, com bastante cliente e uma vida bem estruturada. Tentei mexer com salão, já fui porteiro por um ano, mas sempre gostei mesmo é de mexer com flor. Já peguei casamento para enfeitar, mas nunca divulguei muito”, comenta o vendedor que nas datas festivas chega a comprar 150 dúzias, como foi seu recorde, batido ano passado, no fim de semana das mães. “A vantagem das rosas são as datas boas. Tem o dia das mães, o dia das mulheres, o dia dos namorados. No dia a dia, vendo 60 rosas na sexta, 60 no sábado.”

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Quando Wagner desembarca do ônibus que sai do seu Bairro Santo Antônio rumo à Praça da Estação inicia as vendas. “Vou andando pela (Avenida) Itamar Franco, (Rua) São Mateus, até chegar ao (Bairro) Alto dos Passos. Tudo a pé. Começo sempre às 19h. Dia de semana vou até meia-noite e fim de semana vou até 2h. Virava noite antigamente, na ABCR, na Toca da Raposa, mas agora estou um pouco cansado para isso. Não consigo dormir de dia”, afirma, para logo pontuar outros tempos também para os que lhe compram as rosas. “Antes eu chegava para cem casais e 50 compravam. Hoje, para vender para 50 é preciso oferecer para mais de mil, rodar muito. Às vezes, eu vejo, a mulher pede a rosa e o homem não dá. Outras vezes é o homem quem quer dar a rosa e a mulher não quer, diz que prefere um copo de cerveja”, enumera Wagner, que vive a delicadeza das rosas e o constrangimento dos bares. Há os que brincam com a flor e devolvem para o buquê, há os que nem sequer olham para a oferta, há os que recusam de longe, mas, por sorte, também há os que se encantam. Tudo, o vendedor diz tirar de letra. Ele e poucos outros que insistem num ofício em extinção. “Hoje quem vende na rua sou eu, um irmão meu, o Marcos; o Sidney, que a gente ensinou a vender quando ele saiu do serviço dele; outra irmã, a Margarete; e meu cunhado, o marido dela. Tinha o seu Luís, que faleceu há pouco tempo. Pelo que sei, somos só nós”, lamenta. As ambições são poucas, certifica. “Não tenho aquela coisa de grandeza. A gente vivendo com saúde e paz, tendo o que comer e condições de pagar as dívidas e dar o de melhor para minha esposa e minha filha, para mim é o suficiente.” E a campanha política, Wagner? “Sempre gostei de política e queria somar”, afirma ele, candidato a vereador na última eleição. “Minha campanha foi difícil, não tinha dinheiro, nem companhia. Tive 200 votos, se tivesse trabalhado mais, com mais condição, mais dinheiro e um grupo me apoiando, teria ido mais longe”, garante o homem, como a dizer que os espinhos também são partes das flores.

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