Projeto em Sarandira cria inédito espaço de convivência para os moradores

Como construir o convívio: Projeto Sarandira Criativa instalou um grande banco e duas mesas com bancos para os habitantes do lugar, discutindo demandas coletivas do pequeno distrito e chamando atenção para a urgência de políticas que permitam uso efetivo do espaço público


Por Mauro Morais

06/12/2020 às 06h58

Sarandira viu o tempo passar sem libertar-se do passado. Prova disso é que em 2020, aos 140 anos, o distrito de Juiz de Fora ainda não comportava nenhum espaço de convivência para seus poucos moradores. Um banco de concreto fixado na frente do posto de saúde era o único mobiliário público do lugarejo de cerca de 100 km². O verbo ser flexionou-se no passado na última semana, quando o projeto Sarandira Criativa construiu ali dois espaços comuns: um agigantado banco e duas mesas com quatro bancos. A mudança na paisagem é resultado da residência artística dos arquitetos e urbanistas Clara Sefair e Rafael Monteiro, que passaram duas semanas no local, ouviram os habitantes e idealizaram a proposta erguida também coletivamente. Iniciativa da Associação Carabina Cultural em parceria com o Instituto Amado, o projeto tem financiamento do Fundo Estadual de Cultura, e prevê, ainda, outras duas etapas, uma contemplando o desenvolvimento de artesanato criativo, e outra, a produção de três esculturas gigantes. Ambas acontecerão concomitantemente e estão previstas para março do próximo ano.

Sarandira, distrito de 140 anos, recebeu residência criativa com dois arquitetos de Juiz de Fora na segunda quinzena de novembro. (Foto: Suzana Markus/Carabina Cultural/Divulgação)

A ausência de áreas de encontro em Sarandira tem raízes na origem do distrito, no século XIX. Forjado no auge do período cafeeiro, junto do vizinho distrito de Caeté, o terreno montanhoso reunia grandes fazendas, que se impunham sobre um minúsculo povoado. Segundo o pesquisador Petronio Foscarini Neto em sua dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, intitulada “O distrito de Sarandira: mudanças e permanências na paisagem”, em 1915 a localidade ainda denominada Sarandy somava apenas 200 moradores. Caeté, por sua vez, reunia 400 habitantes. Juntos, as duas formavam uma única freguesia. Ao redor delas, nas lavouras, viviam 6,5 mil pessoas, mais de dez vezes o número de habitantes dos arraiais. “Como dominava na região a grande propriedade, não há indícios de uma sociabilidade coesa fora dos dois povoados e das fazendas, que poderia congregar pequenos produtores donos da própria iniciativa de trabalho e que realizassem um mínimo ajuste ecológico, a exemplo daqueles que caracterizavam os bairros rurais comuns a outras regiões dos estados mineiro e paulista”, explica o estudioso em seu extenso trabalho.

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Arquitetos e urbanistas, Clara Sefair e Rafael Monteiro projetaram espaço de convivência a partir de conversas com moradores do distrito. (Foto: Suzana Markus/Carabina Cultural/Divulgação)

Para o arquiteto e urbanista Rafael Monteiro, a falta de sociabilidade responde em grande medida pelo quadro demográfico do distrito que em seus 140 anos viu a população de Juiz de Fora aumentar em quase 3.000%, saltando de 18.775 no recenseamento de 1872 para os atuais 573.285 habitantes estimados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. Enquanto isso, a população urbana de Sarandira, segundo o último censo, de 2010, é de apenas 212 pessoas, e na área rural, que engloba Sarandira e Caeté, vivem outros 334 habitantes. “Há dificuldade do transporte público, só com três horários de ônibus, e algumas vezes ele nem chega. A questão de lazer para os jovens também é de pouco ou nenhum acesso. O que resta é o êxodo, com o pessoal vindo trabalhar em Juiz de Fora e voltando apenas para dormir em Sarandira. O ideal seria manter a população ali e valorizar o patrimônio histórico da cidade. Na imersão, conseguimos analisar essas informações e propor coisas novas para o lugar”, indica Monteiro, apontando para deficiências reconhecidas pela própria Prefeitura, que no atual Plano Diretor Participativo classifica como grande a falta de infraestrutura básica no lugar. “Sarandira é um núcleo bem pequeno que apresenta carência de equipamentos urbanos, espaços públicos de convívio e lazer”, admite o documento.

Mãos à obra: Clara e Rafael acompanharam e participaram da execução da obra, feita com dormentes doados pela MRS para o projeto. (Foto: Suzana Markus/Carabina Cultural/Divulgação)

Espaço público ao público

Retrato de muitas outras localidades Brasil afora, país formado por uma esmagadora maioria de municípios (84%) com menos de 20 mil habitantes – e mais de 20% das 5.507 cidades com menos de 2 mil moradores -, Sarandira reflete os problemas provocados por um espaço onde a ineficiência, ou mesmo ausência, do Poder Público alimenta a decadência. Segundo a arquiteta e urbanista Clara Sefair, durante os dias em que esteve no distrito, na segunda quinzena de novembro, ocorreram problemas relativos ao abastecimento de energia e ao fornecimento de transporte público. Para ela, são urgentes políticas de saneamento e capacitação técnica para a juventude. “Tivemos contato com alguns jovens e ficou muito clara essa ausência de referências”, aponta. “É um lugar muito potente”, avalia, para em seguida ressaltar a dimensão dos problemas: “São questões primordiais que precisam ser sanadas através de políticas públicas, não há outro jeito”.

Comunidade também ajudou na instalação dos bancos e das mesas e na requalificação do local. (Foto: Suzana Markus/Carabina Cultural/Divulgação)

Recusando a noção de intervenção e adotando a ideia de interação, o projeto Sarandira Criativa aposta no pertencimento dos moradores do lugar e na criação da autoestima e na valorização patrimonial para que o distrito encontre um futuro menos árido que o presente. “A proposta de residir, ficar algum tempo pensando, é incrível. Estar ali de corpo presente, entendendo como iríamos atuar, permitiu conhecer o lugar a fundo. No segundo dia fizemos um encontro com a comunidade, explicamos o que havíamos pensando, identificamos demandas e descobrimos que existem, ainda, muitas questões para serem contempladas”, recorda-se Clara. “Tentamos não chegar com nada muito pronto, definido, tendo um olhar de entender o que a comunidade precisava e queria”, acrescenta Rafael Monteiro.

Suzana Markus, uma das sócias do Carabina Cultural, lembra que a demanda agora atendida era antiga. “A única área de convivência daquele centrinho era um banco de concreto do posto de saúde. Desde o início do projeto, em 2014, eles sempre demandaram um lugar para encontrar e conversar”, conta ela, que conseguiu o financiamento, abriu um edital para receber projetos arquitetônicos, recebeu a doação de dormentes da MRS Logística, selecionou Clara e Monteiro entre propostas do país inteiro e deu a partida em plena pandemia. “Entregamos sem inaugurar. Deixamos eles identificarem para usufruir melhor depois da pandemia”, diz, assegurando ter seguido um rígido protocolo e proteção contra o coronavírus durante a execução do projeto.

Área de convivência foi construída com dormentes próximo à área com equipamentos para atividade física já existentes. (Foto: Suzana Markus/Carabina Cultural/Divulgação)

Pandemia realça importância de áreas livres

Embora em pouco lembrasse uma praça, o espaço onde foram fixados os mobiliários propostos pelo Sarandira Criativa sempre foi identificado pelos moradores do distrito. Clara Sefair conta que o ambiente era constantemente usado para reuniões, mas carecia de mobiliário para permanência. “Faltava infraestrutura para o uso que eles já dão”, diagnostica, sobre a região central do povoado. “É o ponto nodal da comunidade”, classifica. A criação com os dormentes não interfere na paisagem e dialoga com o entorno, característica reforçada ainda mais com a pintura de um muro, anteriormente branco e, agora, em tom terroso. A tinta utilizada foi produzida no próprio local, com óleo de linhaça, uma espécie de cola e argila encontrada em Sarandira. “Vejo a importância tanto do objeto construído quanto da forma como é construído. É preciso haver um diálogo com o espaço e com a comunidade”, aponta Rafael Monteiro, que trabalha com bioarquitetura e resgate de técnicas tradicionais. “Criamos uma identidade com o patrimônio histórico de lá”, comemora.

Distrito que antes só contava com um banco de concreto, hoje tem duas mesas com quatro banquinhos e um grande banco. (Foto: Suzana Markus/Carabina Cultural/Divulgação)

Ao ar livre, a área de convivência também responde aos tempos pandêmicos, que rejeitam ambientes fechados. “A pandemia mostra a necessidade de ter esses espaços em áreas periféricas, um urbanismo de qualidade”, defende Monteiro, pontuando as lições que o projeto em Sarandira oferece. E não para por aí. Suzana Markus e sua Carabina Cultural – que em 2017 pintou, também junto do Instituto Amado, algumas fachadas de casa do pequeno distrito – projetam ainda mais transformações na localidade de poucas vias e muito verde. “Nosso próximo grande projeto para o distrito é a restauração do casarão de Sarandira, que adquirimos e vamos revitalizar. Vai trazer ainda mais possibilidades para a comunidade na geração de renda e ampliação da autoestima. A gestão do casarão será em conjunto com a comunidade, com um pequeno Museu do Café, como um centro cultural, dando acesso à cultura para a comunidade. Também queremos criar uma cozinha colaborativa, com a cozinha espetacular de Sarandira, e a criação de quartos de hospedagem. Vamos propor que eles continuem com esse grande projeto”, enumera, certa de que a escrita sustentável de uma coletividade se faz de mãos dadas.

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