Ato contra ‘cura gay’ reúne centenas de pessoas no Centro de JF

Manifestação ocorreu em frente à Câmara; especialistas avaliam efeitos da decisão judicial


Por Tribuna

22/09/2017 às 19h02- Atualizada 23/09/2017 às 15h34

Júlia Pessôa e Carime Elmor Repórteres
Foto: Marcelo Ribeiro

Unindo-se a série de atos realizados em todo o país às 17h desta sexta-feira (22) contra a liminar expedida no último dia 15 pelo juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara do Distrito Federal, que autoriza a realização de pesquisas e o tratamento de “reversão sexual”, dezenas de pessoas reuniram-se ontem em frente à Câmara Municipal em protesto. O ato começou a ganhar mais adeptos por volta das 18h30. Pouco antes das 19h, após falas de lideranças, a manifestação se dirigiu ao Calçadão da Halfeld, parando por instantes no cruzamento com a Rio Branco. O ato seguiu até a Praça Antônio Carlos. Segundo estimativa da PM, 200 pessoas participaram do ato. No entanto, participantes acreditam que o número chegou a 400. Durante o trajeto, entoavam gritos como “as gay, as bi, as trans e as sapatão. Tá tudo organizado pra fazer revolução.”

Houve presença em peso de manifestantes muito jovens, alguns acompanhados por suas famílias, como o adolescente trans Pedro Jacobsen, 17 anos. Sua mãe não apenas apoiou o ato, mas pretende criar uma rede de apoio para mães de filhos e filhas LGBTTI, fundando em JF o “Mães pela diversidade”, movimento que já existe nacionalmente.

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“A ideia é orientar as mães para que estejam aptas a apoiar seus filhos e filhas. Estamos aqui para mostrar que nossos filhos são saudáveis, doente é o tratamento que a sociedade dá a eles. Muitos adoecem por causa deste tratamento”, diz ela. Para Pedro, o apoio da mãe foi fundamental. “Foi o que me salvou e permitiu que eu fosse quem eu sou. E vê-la criar este movimento para permitir que outras mães façam isso é lindo”. Para o estudante Avelino, que exibia uma faixa com os dizeres “Sr.Juiz pare agora”, é essencial que haja mobilização da sociedade. “Precisamos ter voz e mostrar quem somos, sem ter alguém que nos impeça.”

As psicólogas Brune Coelho e Daniele Mesquita, que integram o Grupo de Trabalho de Gênero e Sexualidade do Conselho Regional de Psicologia, também presentes no ato, afirmaram que a decisão da liminar tangencia exatamente as questões abordadas pelo trabalho da organização. “A maior parte dos psicólogos e psicólogas está indignada com essa decisão, que fere princípios básicos da profissão. A psicologia trabalha justamente na despatologização das identidades LGBTTI, e autorizar estas terapias tem efeitos extremamente danosos para os pacientes”, diz Brune. “Os danos psíquicos da comunidade LGBTTI têm origem no preconceito, que é respaldado por decisões como esta, completa Daniele.

Decisão abre perigosos precedentes jurídicos e no campo da psicologia

Segundo Andréia Stenner, doutora em teoria psicanalítica pela UFRJ e especialista em saúde mental pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais, a liminar que autoriza a realização de terapias de reversão sexual não apenas desrespeita o Conselho Federal de Psicologia (CFP), que desde 1999 proíbe tais procedimentos, mas também abre brecha para discursos e atos homofóbicos. “Qualquer prática terapêutica que vise a tratar a homossexualidade parte de uma promessa que cientificamente não tem comprovação alguma e que, no cenário brasileiro, em que existem tantos crimes motivados por homofobia, as questões de gênero devem ser abordadas alinhadas e alicerçadas nos direitos humanos e nas próprias considerações feitas pela área de saúde. É importante lembrar que a Organização das Nações Unidas (ONU) trouxe para o Brasil uma agenda específica para a população LGBTTI, para assegurar os direitos desta população”, diz a psicóloga, também professora da Estácio de Sá, destacando que a OMS não prevê a homossexualidade e a homoafetividade como patologias desde 1975.

Andréia rebate outro argumento usado para sustentar a liminar, em prol da liberdade de pesquisa científica dos psicólogos. “O psicólogo tem como dever ético e profissional acolher e tratar o sofrimento de qualquer pessoa, em qualquer condição, mas jamais mudar a identidade de gênero ou orientação sexual, não existe tratamento embasado cientificamente para este fim. E, além disso, não cabe ao Judiciário legislar sobre o que é de âmbito da saúde”, destaca a profissional.

Foto: Marcelo Ribeiro

Alinhada ao discurso da psicóloga, Joana Machado, professora da Faculdade de Direito da UFJF e integrante da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da OAB/JF, destaca que algumas decisões discursivas da liminar, como não usar termos como “cura” ou “doença”, têm o efeito de inibir a leitura de que o posicionamento “se trate de uma decisão despudoradamente política, comprometida com agenda conservadora e/ou fundamentalista”, como ela frisa.

“Tanto que, para muitos defensores da decisão, o juiz apenas possibilitou orientação psicológica à população LGBTTI, como se o termo ‘reorientação’ significasse apenas acompanhamento, acolhimento, e não uma promessa de reorientação sexual, promessa vazia e violenta de reversão. Essa escolha serviu para confundir, porque deu a entender, para quem não se deu ao trabalho de ler a resolução questionada, que a população LGBTTI estava impedida de buscar ajuda de profissionais da psicologia, e que a decisão veio a favorecê-la! Por fim, o uso de argumentos constitucionais (notoriamente mal empregados, mas ainda que não o fossem) serve para camuflar a escolha do magistrado com a suposta neutralidade da técnica jurídica, para naturalizá-la, como se o Direito, enquanto sistema, e não a própria figura do magistrado, é que estivesse a decidir”, pontua.

Foto: Marcelo Ribeiro

Manifestações populares, institucionais e legais ajudam a combater a medida

A professora Joana Machado lembra que a linha argumentativa da liminar é a mesma que já foi utilizada por setores junto ao Poder Legislativo quando, pela via parlamentar, em uma tentativa prévia de se esvaziar a resolução do CFP que proíbe terapias relacionadas à reversão sexual, como o projeto apresentado em 2013 pelo deputado João Campos (PSDB-GO) e defendido pelo também deputado Marco Feliciano (PSC-SP). Como a decisão de agora, o projeto evitava certos termos, mas na prática, abria precedentes para pseudotratamentos da orientação sexual. “Também o discurso religioso consegue se adaptar e substituir, quando necessário, o ódio panfletário por formalismo jurídico e obter o mesmo resultado pretendido. A diferença é que, quando o Judiciário, sobre o qual há uma expectativa de legitimação técnica, assume o papel de autorizar esse tipo de violência simbólica, não apenas a institucionalizando, mas forjando uma razão técnica para a sua aceitação, a sociedade pode se sentir mais convidada a perpetuá-la.”

Segundo Joana, como se trata de decisão em sede de liminar, há fundamentos materiais e vias formais para se combatê-la, como a possibilidade de o CFP interpor agravo de instrumento para buscar derrubá-la. “Inclusive, a OAB já se pronunciou no sentido de pretender auxiliar, como amicus curiae (amiga da corte), o CFP nessa caminhada. É importante destacar quando, a despeito da tradição conservadora que marca o campo jurídico, atores jurídicos conseguem efetivamente se posicionar contra injustiças e não se esconderem em discursos aparentemente isentos, pseudo neutros e/ou conciliatórios. Estamos a refletir sobre uma população que é morta diariamente no país e a omissão, nesse contexto, significa assumir o lado da opressão, da violência. É possível fazer a necessária crítica ao campo jurídico sem desistir de transformá-lo, sem deixar de comemorar, ainda que sob o alerta de suas limitações, os bons resultados que nele (em geral por pressões mais externas) aflorem.

Na última quinta-feira (21), o Conselho Federal de Psicologia (CFP) recorreu da decisão do juiz da 14ª Vara do Distrito Federal, Waldemar Cláudio de Carvalho. Diversas instituições da área de saúde manifestaram repúdio à liminar, além de movimentos sociais, instituições públicas e privadas, políticos, celebridades e populates. Para a psicóloga Andréia Stenner, essa mobilização é imprescindível para evitar o retrocesso social que a medida representa. “Elas representam não só um posicionamento, mas uma ferramenta a ser apresentada ao Judiciário a fim de que o Brasil respeite as tratativas internacionais de que é signatário no que diz respeito à saúde e aos direitos humanos. Elas existem para que melhoremos como sociedade na forma como pensamos, nos relacionamos, atendemos a população LGBTTI no Brasil.”

Joana Machado acrescenta que é preciso investir cada vez mais em ações afirmativas para que haja avanço na agenda de populações vulnerabilizadas, mesmo em um contexto de educação jurídica que, segundo a especialista, é ainda elitista e arrogante. “Nosso Judiciário, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, é predominantemente composto por homens brancos cis heterossexuais, provenientes de classe média, classe média alta. Um poder, portanto, que, como os demais, padece de falta de representatividade. Com as políticas de ações afirmativas, já começamos a ver resultados na alteração do perfil de estudantes do curso de Direito, a qual começa, a passos lentos, a repercutir no desafio à lógica hegemônica nos cursos jurídicos e nos quadros profissionais desse campo. Apenas com o aprofundamento desses processos é que poderemos ter juízes e outros atores jurídicos mais preparados (isto é, com técnica socialmente referenciada) e sensíveis para a diversidade que marca as vivências de mundo.”

A involução do pensamento

Foto: Marcelo Ribeiro

O contexto é de desacreditar que possa se ter aberto uma audiência com esse pretexto, mas sem ficar em estado de inércia. É um sentimento de “desapontado, mas não surpreso”, com a opinião conservadora de uma parcela dos políticos. “Não era pra gente estar discutindo o direito dos robôs em 2017? A gente ainda está discutindo que gay é doença?”, questionou JoutJout, youtuber e jornalista carioca, em um dos recentes vídeos de seu canal. Os compartilhamentos, gifs e comentários acerca da “cura gay” chegou ao humor, por ser uma formação discursiva incoerente com a evolução do pensamento.

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No entanto, é preciso ser levado muito a sério. “Entendo que isso esteja acontecendo porque é uma parada absurda demais, mas a gente tem que pensar que existem pessoas em que a família vai apontar e encontrar algum respaldo para dizer que é uma doença. Tem gente que realmente sofre com essa realidade e, às vezes, acha que está doente por causa da pressão social”, afirma Laura Conceição, 21, rapper e feminista. Laura, além de militar pelo direito das mulheres – inclusive o de poder amar quem elas quiserem – pesquisa gênero, feminismo e comunicação em sua graduação. Sua arte, claro, reflete sua vivência em todos esses aspectos. “Eu, como Mc, pertencente ao movimento Hip Hop, acho fundamental esse engajamento social em minhas letras. Não só por eu viver a situação, mas também por buscar essa justiça geral.” O que mais ela tem receio é que homicídios por homofobia e transfobia aumentem ainda mais no Brasil. “O acesso à informação em qualquer viés social é fundamental para romper com seus preconceitos, até em relação a você mesmo”, complementa.

Conversando com a Laura Conceição, rapper juiz-forana, propomos a ela de compor um rap especial para essa reportagem, o vídeo está disponível em nosso site, e a letra vem a seguir:

A sociedade anda
Retrocedendo anos
Em armários se armazena roupa
Não seres humanos

Se eu beijar outra mulher
Vão dizer que estou errada
Não caio em fina malha
Afeto envolve pessoas
Não somente genitálias
Conservadorismo leva o mundo ao fim
A quem destino meu amor
Decisão que só cabe a mim

Bancando as minhas ideias
Vou insistir
Ótima hora pra homofóbico subir
Ótima hora pros boy parar de agredir
Eu sou mulher pare de me diminuir
Até onde eu sei
Só eu sei bem o que vivi
Hoje cedo me olhei no espelho
E amei tudo que eu vi

Preconceito é corrente
Sejamos a ruptura
Amar nunca será doença
Amar sempre será cura
O amor é livre
Pessoas morrem todos os dias por amar
Pense!

(“Pense!”, por Laura Conceição, setembro de 2017)

Manifestantes mais jovens estavam acompanhados por familiares (Foto: Marcelo Ribeiro)

A militância organizada pelos mais jovens

O ato desta sexta-feira (22) em Juiz de Fora foi organizado por alunos de ensino médio e um aluno do 9º ano do ensino fundamental. De uma maneira geral, a representatividade LGBTTI na luta por direitos está vindo muito mais de pessoas que acabaram de assumir sua identidade de gênero. “A juventude atual está mais motivada a lutar pelos seus direitos e ideais, querendo cada vez mais conseguir seu espaço na sociedade. E isso não é só na comunidade jovem LGBTQ+, em outros manifestos vemos a presença de uma população jovem. Acredito que essa militância seja importante, pois a nossa comunidade, que já sofreu tanto calada, no passado, agora quer fazer a diferença e exigir respeito para que as próximas gerações possam desfrutar de um mundo onde exista igualdade”, afirmou Felipe Borges Modesto, 18 anos, que aos 16 se assumiu como homossexual e hoje é um homem trans. A sigla LGBTQ+, utilizada por ele, é recente e mais abrangente. Engloba os transgêneros como um todo, os “queers”, que se aproximam de andrógenos e “questioning”, sobre aquelas pessoas que ainda estão se permitindo descobrir e questionando a própria sexualidade, além de outras identidades de gênero que possam existir e representar alguém.

A pauta dxs trans

Em 1992 a OMS tirou a homossexualidade do CID – Cadastro Internacional de Doença, não sendo tratada, a partir daí, como um desvio ou patologia. No entanto, a transexualidade ainda permanece na 11ª edição desta classificação. A atual discussão em torno da “cura gay” levou pessoas transgênero a retomarem essa luta.
No ano passado um grupo de cientistas mexicanos realizou um estudo e apresentou resultados à OMS comprovando que não se trata de um transtorno psiquiátrico, e que na verdade, qualquer questão psicológica que sofrem, têm muito mais relação com a violência de gênero causada pelo próprio preconceito.
A comunidade trans depende muito da saúde pública para tratamentos hormonais, essa pauta vai além do combate à discriminação, é a luta por seus direitos para que tenham acesso a melhores serviços de saúde.

Nino é “femmenino”

Nino de Barros, 22 anos, é gay e cisgênero. Estudante de artes no IAD da UFJF, onde começou a ter mais contato com grupos LGBTTIs. Quando se assumiu gay, aos 15 anos, seus amigos na escola eram héteros e não tinha, ainda, um debate muito disseminado nas escolas. “Toda vez que vejo uma movimentação relacionada a ato de protesto, é um povo antigo, de muito tempo e que já trabalha com isso formalmente. Mas poder ver a galera nova tomando a frente do ato contra a liminar é muito importante. A galera se junta, se organiza e usa essa força. Quando se é trans ou gay adolescente, essa frustração te dá uma energia que deve ser usada como força, essa galera não tem que sofrer em casa, tem que ir pra rua!”.

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