Propostas para população de rua estão engavetadas

Projeto de lei e diagnóstico foram finalizados no fim do ano passado, mas Poder Público não adotou medidas. Equipamentos públicos têm baixa adesão, enquanto esta parcela da sociedade continua desassistida


Por Rafaela Carvalho

15/09/2017 às 06h30

Problema é evidente em Juiz de Fora, principalmente no Centro, onde praças, como a do Riachuelo, transformam-se em abrigo (Foto: Felipe Couri)

Dois documentos que contêm propostas de políticas públicas para pessoas em situação de rua estão engavetados há quase um ano. As propostas estão elencadas em um projeto de lei elaborado pelo Comitê Intersetorial de Políticas para Pessoas em Situação de Rua – Comitê Pop Rua e em um diagnóstico sobre as características dessa população, ambos finalizados no fim do ano passado. Os documentos, no entanto, não tiveram seguimento, e, conforme denúncia de órgãos e profissionais ligados ao assunto, estão sendo ignorados pelo Poder Público Municipal. Enquanto isso, a sensação da população é de que o número de pessoas que moram na rua está aumentando, principalmente na área central. Nesta semana, a Tribuna flagrou cabanas e até um varal na Praça do Riachuelo, no Centro, onde, segundo moradores e comerciantes do entorno, um grupo de pessoas tem permanecido durante a noite e parte do dia, em uma espécie de abrigo improvisado. Leitores da Tribuna relatam que o sentimento é de que nada está sendo feito por essa parcela vulnerável da população, que demanda muitos cuidados.

O projeto de lei elaborado pelo comitê, que é paritário e tem participação da sociedade civil e de representantes da Prefeitura, foi aprovado em plenária em novembro de 2016 e enviado para a Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS) no mês seguinte. O Executivo deveria analisar o documento e encaminhá-lo ao Legislativo, para posterior análise e aprovação na Câmara dos Vereadores. O objetivo era instituir a política para inclusão social da população em situação de rua de Juiz de Fora, estabelecendo diretrizes, que, conforme o documento, deveriam ser implantadas com primazia de responsabilidade do Poder Público Municipal. No entanto, o Comitê só teria recebido uma resposta da SDS oito meses depois, em agosto deste ano.

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Por conta da demora, integrantes do Pop Rua e do Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH) estão questionando a morosidade. “Quando se encaminha a proposta, espera-se que o Executivo mande uma mensagem ao Legislativo para que ela seja votada na Câmara. Tentamos agendas com o secretário, mas não tivemos sucesso. Na resposta que recebemos, havia duas perguntas sobre o reordenamento do serviço de atendimento à população de rua, mas nada foi feito”, pontuou a assistente social do CRDH, Paula Miranda.

De acordo com o primeiro artigo do projeto de lei, sua finalidade é “implantar políticas públicas de forma intersetorial e transversal, garantindo a estruturação da rede de promoção, proteção e defesa às pessoas em situação de rua”. As propostas giram em torno de nove eixos, que abrangem as principais necessidades e demandas da população de rua: direitos humanos, assistência social, educação, saúde, segurança alimentar, habitação, geração de trabalho e renda, segurança urbana e cidadania e cultura, esporte e lazer. Em cada um deles, diretrizes detalhadas deveriam assegurar os direitos das pessoas em situação de rua. “O documento traz uma proposta de implantação da política municipal a partir destes eixos. Já existe a política nacional, e buscamos fazer a municipal, pensando nas especificidades do território. Acredito que a morosidade na aprovação da própria política é uma forma de o Poder Público se desresponsabilizar na garantia dos cuidados e da garantia dos direitos dessa população”, lamenta Paula.

Questionada pela Tribuna, a SDS afirmou que recebeu o ofício com o projeto de lei, encaminhado pelo Comitê Pop Rua no final do ano de 2016. Por meio de nota, a assessoria da pasta explicou que “devido à complexidade do assunto, existe a tramitação interna, para que a equipe interna e a Procuradoria possam elaborar o parecer técnico relativo ao assunto, o que foi respondido em agosto de 2017, solicitando explicações e complementações ao projeto”. Ainda conforme a nota, a SDS estaria aguardando a resposta do Comitê sobre estes questionamentos.

Impasse

Em ofício enviado para o Comitê Pop Rua, datado de 15 de agosto deste ano, o secretário de Desenvolvimento Social do Município, Abraão Ribeiro, informou que o projeto de lei foi encaminhado para apreciação da Procuradoria Geral do Município. Em cópia, também foi enviada a resposta dada por este órgão, recebida pela SDS em janeiro deste ano. Na ocasião, a Procuradoria solicitou complementações ao projeto de lei, solicitando ao comitê que explicitasse de forma mais clara as formas como o Município poderia aplicar estas políticas de forma prática.

Insatisfeitos, membros do comitê afirmam que este posicionamento só foi comunicado oficialmente sete meses após a resposta original da Procuradoria, ainda assim, porque foi solicitado à SDS. Outra questão é a falta de diálogo, visto que, ainda conforme o comitê, a gestão da SDS se recusa a dialogar sobre os questionamentos explicitados no documento. Desta forma, as respostas obtidas devem ser debatidas em plenária do comitê para definir quais medidas serão tomadas.

Para o membro do Comitê Pop Rua, Paulo Cézar de Oliveira, é sabido que as mudanças não acontecem instantaneamente, mas é preciso que o Poder Público faça sua parte. “Estamos há quase três anos discutindo essa política e fazendo propostas. Já avançamos, mas alguns detalhes continuam emperrados, e são coisas assim que continuam como empecilhos para levar as pessoas em situação de rua para os aparelhos públicos já existentes. O que queremos é simplesmente ver as políticas públicas destinadas à população em situação de rua implementadas no município.”

Diagnóstico aponta fracasso das políticas públicas atuais

Cena de pessoa dormindo na rua se repete na Praça da Estação (Foto: Marcelo Ribeiro)

Outro documento elaborado com o objetivo de nortear as ações do Poder Público Municipal na tentativa de atender as demandas das pessoas em situação de rua é o Diagnóstico da População em Situação de Rua. Apresentado em dezembro do ano passado, o diagnóstico revelou os hábitos e características da população em situação de rua, por meio de dados quantitativos obtidos com pesquisa e metodologia científica. Elaborado pelo sociólogo Igor Rodrigues, doutor em Ciências Sociais pela UFJF, o documento apontou a baixa adesão das pessoas em situação de rua a equipamentos públicos voltados para o acolhimento, assim como outras situações urgentes.

“O diagnóstico tem como objetivo dar voz a essa população por meio das demandas verificadas por eles. Se identificamos os motivos pelos quais eles não aderem aos serviços, é possível identificar soluções para este problema. No entanto, é preciso, primeiramente, reconhecer o fracasso das políticas públicas já existentes. Elas giram em torno de ações de saúde e da polícia, mas isso não favorece os cidadãos de rua, que adquiriram resistência às políticas colocadas hoje em prática por conta dos sucessivos fracassos”, pontua o sociólogo.

Porém, quase um ano após a finalização do documento, nenhuma proposta foi colocada em prática. “O diagnóstico passa a ser um instrumento de controle social, porque possibilita que acompanhemos a realidade dessa população, que sempre foi mascarada. Se em dez anos um novo diagnóstico for feito, por exemplo, saberemos o que melhorou ou piorou. Mas enquanto sociólogo, percebo que o trabalho foi um tiro desperdiçado. Diversos órgãos se empenharam, propondo ações conjuntas, mas ele foi por água abaixo.”

Segundo Igor, ações adotadas pela Prefeitura, como a intensificação das abordagens e algumas melhorias na infraestrutura dos serviços de acolhimento, feitas com base no documento, conforme a Prefeitura, são pontuais e fragmentadas. Além disso, para o sociólogo, as justificativas do Poder Público para não aplicar novas políticas são infundadas.

“As reivindicações são muitas. O modelo de acolhimento que está colocado, por exemplo, não oferece individualidade, o modelo não se encaixa. Outra questão é a promoção social, em termos de ultrapassar essa necessidade de acolhimento, pois os cidadãos de rua querem melhorar suas condições e obter sustentabilidade econômica. Existe a pauta de saúde, na qual eles não foram contemplados em nenhuma dimensão, e questão jurídica, de formalização de vínculos trabalhistas, como catadores de lixo. Tudo isso faz parte de um pacto de cidadania que o diagnóstico sugere, mas que não foi adotado.”

Por meio de nota, a SDS se pronunciou sobre ambos os documentos. Segundo a resposta da pasta, “documentos com participação democrática são sempre bons norteadores dos projetos de políticas públicas, no entanto, é preciso elaborar projetos consistentes e sustentáveis. Alguns projetos sobre inclusão sócio-produtiva estão em planejamento e outros, como o projeto Porta Centro Pop, estão sendo executados.” Ainda conforme a pasta, o Porta Centro Pop inclui a realização de abordagens por meio de atividades lúdicas, para buscar aproximação com moradores de rua que não aderem aos equipamentos.

Especificamente sobre o diagnóstico, a SDS se limitou a dizer que a pesquisa é o único meio oficial de quantificação de moradores de rua que a Prefeitura possui. Ainda por meio de nota, a assessoria da pasta explicou que os dados anteriores eram do Ministério de Desenvolvimento Social, e, em 2010, este número seria de 607 pessoas. “No entanto, [os dados do Ministério] não possuíam o rigor técnico e a especificidade do Diagnóstico atual, que separa o grupo em três perfis distintos: 243 pessoas dormindo na rua, 141 acolhidos e 496 que sobrevivem das ruas, mas voltam para casa.”

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Má execução dos serviços

Nas últimas semanas, a Tribuna percorreu as ruas e acompanhou relatos de cidadãos que lidam com pessoas em situação de rua e dos próprios moradores de rua. Entre os principais problemas apontados estão as condições oferecidas no Núcleo do Cidadão de Rua e na Casa da Passagem, conhecidos como os albergues masculino e feminino, respectivamente. Em junho, a Prefeitura divulgou que cresceram as abordagens à população de rua, com o objetivo de aumentar a adesão aos serviços de acolhimento, mas a Tribuna também tem recebido reclamações sobre a forma de realização das abordagens.

Entre as situações mais preocupantes estão o recolhimento de pertences de um homem em situação de rua de 40 anos, no Bairro Estrela Sul, por duas vezes, e a posterior instalação de arame farpado em uma propriedade para que ele não permanecesse mais no local. Ele afirmou à Tribuna que uma equipe de abordagem levou seus pertences após não encontrá-lo. Outro relato dá conta da falta de atendimento de saúde a uma grávida em situação de rua, que tem permanecido na região central.

Paulo Cezar de Oliveira, do Comitê Pop, e Paula Miranda, do CRDH, questionam morosidade para aplicação de projetos propostos para população de rua (Foto: Felipe Couri)

Para a assistente social do Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH), Paula Miranda, diversos questionamentos podem ser feitos. “Temos problemas com relação à execução dos serviços. O Núcleo do Cidadão de Rua nem sempre atende às necessidades dessas pessoas. As abordagens para tentar direcionar essa população pelos serviços oferecidos pelo Poder Público também geram reclamações. A Prefeitura alega que elas têm sido feitas dentro da lei, mas entendemos que essa lógica é muito próxima da ideia de higienizar o espaço urbano, pressionando aquelas pessoas para que saiam daquele território.”

Em nota, a SDS afirmou que “está atenta às demandas apresentadas pela população de rua e em constante acompanhamento das entidades executoras dos serviços para essa população”. No entanto, a pasta negou conhecimento sobre reclamações relacionadas ao albergue e às abordagens e informou não haver ofícios protocolados ou reclamações por outros meios de comunicação acerca do assunto.
Sobre os serviços oferecidos pela Prefeitura, a nota pontua que as unidades oferecem acolhida, alimentação, acompanhamento social e pernoite e que são realizadas atividades culturais, lúdicas e de alfabetização nos equipamentos, além de oficinas, reuniões dos Alcoólicos Anônimos e Fórum Itinerante da População de Rua, com encaminhamentos para retirada de documentos e programas de assistência social.

Albergue é rejeitado pelos cidadãos de rua como opção segura

Citado por unanimidade como um equipamento público de baixa adesão, o albergue é rejeitado pelos cidadãos de rua como opção segura de local para passar a noite. É o caso de um homem de 35 anos, há sete na rua. Ele conta que já frequentou o local por dois anos, mas prefere dormir nas ruas. “Parei de frequentar o albergue, mas fiquei alternando entre dormir lá e na rua por dois anos. Das vezes em que fui lá, não tenho muito o que reclamar, mas tem pulgas e ratos, e muita gente prefere não ir.” O ex-pintor, que finalizou o ensino médio e vivia com a família, saiu de casa porque se desentendeu com a esposa e relatou que a sensação no albergue é de insegurança.

Atualmente, ele faz seu sustento como papeleiro, mas foge dos oito filhos porque não quer que eles o vejam nesta situação. Ele afirma que toda a ajuda que obtém é em decorrência de equipes que ajudam as pessoas em situação de ruas, como empresários ou pessoas que colaboram com sua alimentação. “Ganho cerca de R$ 15 por dia, e acho bom trabalhar. Geralmente, costumo ficar no Jardim Glória, mas durmo no Centro há cinco meses. Sobrevivo de doações e do meu trabalho, e a Prefeitura não me ajuda em nada.”

A reclamação é a mesma feita pelo dono de um depósito no Centro, 51 anos. Ele permaneceu nas ruas por quatro anos, ainda adolescente. Quando fez 18, recebeu uma proposta de emprego para atuar com reciclagem e nunca mais parou. Hoje, ele ajuda outras pessoas em situação de rua por meio de um depósito de ferro-velho e papel. “Atualmente, compro material de 22 pessoas. Conversando com eles, percebo que até hoje é a mesma coisa de quando eu ainda morava na rua, nada mudou. As pessoas continuam achando que morador de rua é ladrão, e a Prefeitura, além de não fazer nada, ainda os explora, recolhendo as carrocinhas e cobrando taxas para devolver depois, por exemplo.”

Para o sociólogo Igor Rodrigues, falta ousadia para mudar as políticas públicas. “Os cidadãos em situação de rua não acreditam na solução dos problemas, e a própria população, de forma geral, também descrê. Mas a cidade tem todas as condições e recursos necessários para solucionar essas questões. O grande problema é que se inova muito pouco. A política colocada no município nem é nossa, e reproduz lógicas ultrapassadas de tratamento do problema. Falta coragem, ousadia e iniciativa para criar novas perspectivas, mas há luz no fim do túnel, pois Juiz de Fora tem material humano e recursos para solucionar estas questões.”

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