JF vive epidemia com 24,3 homicídios por cem mil habitantes

Taxa de mortes é bem superior ao preconizado pela OMS, que considera epidêmicos os indicativos superiores a dez mortes para cada cem mil. Um dos assassinatos registrados na cidade é do marido de Patrícia Mota, o vigilante José Márcio Macedo Lima


Por Sandra Zanella e Marcos Araújo Repórteres

13/01/2018 às 07h00- Atualizada 13/01/2018 às 14h07

   A cidade vive uma grave epidemia de homicídios, com índice de 24,3 mortes para cada cem mil habitantes, conforme levantamento da Tribuna, que contabiliza 137 óbitos em decorrência de ações criminosas em 2017. A estatística leva em conta também os falecimentos ocorridos posteriormente em hospitais, mas como consequência dos crimes. O cálculo feito com base na última estimativa populacional do IBGE (563.769) é bem superior ao preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que considera epidêmico indicativos superiores a dez para cada cem mil pessoas. O pico da violência no município ocorreu em 2016. De acordo com dados do jornal, naquele ano foram 27,5 mortes para cada cem mil. Já levando-se em conta os números de Minas Gerais em 2016, divulgados pela então Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds), o município teve taxa de 23,2 assassinatos, ficando quase empatado com Belo Horizonte (23,3) e bem acima da média do estado, de 19,2.

A situação também preocupa conforme o último estudo do Atlas da Violência publicado pelo Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea). Enquanto os homicídios foram estabilizados no Rio de Janeiro e em São Paulo entre 2012 e 2015 e tiveram queda acentuada em Belo Horizonte, em Juiz de Fora houve um salto, ficando acima de Uberlândia na comparação entre as cinco maiores cidades mineiras nesse período (ver gráfico). O intervalo coincide com o observado pela Tribuna, quando os assassinatos saíram da casa dos 50 em 2010 e 2011 e praticamente dobraram no ano seguinte. Desde então, as mortes violentas foram mantidas em um patamar alto, acima de 130, segundo levantamento do jornal, com média de uma ocorrência a cada dois ou três dias.

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Na sexta reportagem da série “Vidas perdidas – um raio X dos homicídios em JF”, o Executivo e o Legislativo municipais mostram o que têm feito para tentar mudar esse cenário desolador, com tantos jovens perdendo a vida para o crime – mais da metade das vítimas têm até 25 anos – , e os projetos para 2018. Ao mesmo tempo, um especialista avalia as possíveis causas dessa interiorização da violência no país, que tem a nona maior taxa de homicídios das Américas, com 30,5 mortes para cada cem mil habitantes, segundo dados de 2015. Juiz de Fora ainda foi na contramão da queda apresentada no Brasil no número de óbitos por crimes proporcional à população, que estava em 32,4 em 2014.

Redistribuição geográfica da violência

Cerca de 185 quilômetros separam Juiz de Fora do Rio de Janeiro. A proximidade cria uma relação entre o município mineiro e a capital fluminense que vai além das questões culturais. A cidade teve 24,9 homicídios por cem mil habitantes em 2015, ficando acima do Rio, com 23,4 no mesmo ano, segundo o Atlas da Violência (ver quadro). A quantidade de assassinatos é surpreendentemente superior à outrora pacata cidade de Minas desde 2013 em relação à capital tida como violenta. Para o pesquisador e professor da Faculdade de Comunicação da UFJF Wedencley Alves, a comparação confirma que a criminalidade avança para outros polos.

“Essa redistribuição se deu por questões como imobilidade de classe social e por cidades que ganharam uma elite financeira maior, ao mesmo tempo em que perderam em qualidade de trabalho para as classes menos esclarecidas. Além disso, houve o avanço do tráfico de drogas. Isso fez com que as guerras do tráfico chegassem a municípios do Nordeste e a Juiz de Fora, resultando numa mudança na geografia do crime, e as cidades de médio porte se tornaram mais violentas”, analisa o pesquisador.

“A violência pode ter altos índices, mas, se ela não chega aos bairros da classe média, isso fica adormecido, não assusta.” Wedencley Alves, professor da UFJF

Ele ainda ressalta que a violência no Rio ganha muita repercussão, uma vez que o município concentra um grande número de veículos de comunicação de alcance nacional, algo que não acontece com as cidades de médio porte e capitais da região do Nordeste. Wedencley ainda alerta para a questão de como a criminalidade é percebida. “A violência pode ter altos índices, mas, se ela não chega aos bairros da classe média, isso fica adormecido, não assusta. Todavia, existe situação em que há a metade desse índice, mas a violência chega à classe média. E não precisa ser o homicídio, que é muito centrado nas classes populares, mas a repercussão é muito grande, com semanas de discussão. Isso faz parecer que há um risco igual a todos, mas definitivamente não é.”

‘Meu mundo desabou naquele momento’

Patrícia Mota perdeu o marido José Márcio assassinado na Cidade Alta em 2016 (Foto: Arquivo pessoal)

A epidemia de assassinatos sobrecarregou a já deficitária estrutura da Polícia Civil, que atualmente ainda apura mais de 800 inquéritos de homicídios e tentativas de homicídios na cidade, segundo dados do site Judiciário referentes a novembro, como mostrado na terceira reportagem da série “Vidas perdidas”. Um desses casos é o da morte do vigilante José Márcio Macedo Lima, 41 anos, assassinado com quatro tiros na cabeça quando trafegava de moto no dia 22 de outubro de 2016 pela Rua José Lourenço, no Bairro São Pedro, na Cidade Alta. Ele havia acabado de deixar o serviço em um condomínio na mesma região, quando foi alvejado por disparos realizados pelos ocupantes de um carro.

“Eu tinha uma vida e, de repente, não tenho mais. Perder alguém por uma covardia e ver tamanho descaso é doloroso”. Patrícia Mota, secretária escolar

Para a esposa da vítima e secretária escolar Patrícia Mota, 42, a dor é ainda maior diante da falta de justiça. O casal ficou 19 anos junto e tem um filho, 12. “Ele era trabalhador e honesto. Todo mundo falava bem dele.” Ela afirma se lembrar de cada detalhe daquele fatídico dia. “Era um sábado, ele saía do trabalho às 19h, e combinamos de fazer churrasco. Como não apareceu até 19h15, logo pensei que tinha acontecido alguma coisa. Dez minutos depois, o sobrinho dele me ligou chorando, falando que tinham acabado de matá-lo com tiros. Meu mundo desabou naquele momento. Não acreditei, mas cheguei lá, e ele estava estirado no chão, coberto com um pano.”

Desde então, a secretária, que trabalhava como diretora em escola municipal até o ano passado, tenta se reinventar. “Eu tinha uma vida e, de repente, não tenho mais. Perder alguém por uma covardia e ver tamanho descaso é doloroso”, diz ela sobre a demora na investigação. “Quero seguir em frente, e sei que meu filho precisa de mim. Estamos falando de um pai de família. Tento sobreviver a um dia de cada vez.” Na visão dela, falta família e educação para reduzir essa violência. “Os jovens que cometem crimes são respeitados. Vejo uma mudança de valores. E a lei não pune.”

Segundo o delegado da Especializada de Homicídios e atual responsável pelo inquérito, Armando Avólio Neto, o caso está sendo tratado com prioridade. “Quando o inquérito foi passado para mim, veio com diversas cotas do Ministério Público, que determinou o cumprimento de várias diligências, oitivas e juntadas de laudos. Despachei no mesmo momento, cumprimos (as exigências) e encaminhamos para o Fórum em setembro. Mas o MP pediu mais diligências, e estamos terminando de cumpri-las. É só isso que falta”, garante.

PJF ressalta projetos para mais de 5 mil crianças e adolescentes

A Prefeitura garante estar adotando uma série de medidas para integrar a segurança pública no município e atuar em projetos sociais voltados para a prevenção e retirada de jovens da vulnerabilidade social. A Secretaria de Segurança Urbana e Cidadania articula ações com as polícias Civil e Militar e abriga a Guarda Municipal. Um Conselho Municipal de Segurança será criado “em breve”, mas detalhes não foram divulgados. “Temos um plano municipal de segurança em elaboração.”

Segundo a assessoria, os programas Bom de Bola, Gente em Primeiro Lugar e o Complexo Travessia, na Olavo Costa, envolvem mais de cinco mil crianças e adolescentes em ações de esporte, lazer e capacitação. Entre outros projetos citados, está o JF+Vida. “A proposta é tornar os serviços públicos acessíveis a populações vulneráveis aos problemas do álcool e outras drogas.” Também há a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e iniciativas voltadas para emprego. O Gente em Primeiro Lugar atua em 55 bairros, com oficinas em 67 locais, enquanto o Bom de Bola tem sete pontos espalhados por todas as regiões. O Núcleo Travessia conta com 11 oficinas e serviços, com quase 1.500 atendimentos desde 2016.

“A grande maioria dos casos com relação aos crimes violentos, aos assassinatos, é relacionada ao tráfico de drogas. Fizemos um trabalho durante esses anos de parceria com o Governo estadual como, por exemplo, o Olho Vivo. Temos a Guarda Municipal, mas o combate ao tráfico de drogas é mais um trabalho de exclusiva responsabilidade do Governo do estado, das polícias Militar, Civil e Federal”, afirma o prefeito Bruno Siqueira (MDB) em entrevista à Rádio CBN, apontando que deve-se evitar que os entorpecentes cheguem ao município.

Em relação à importância dos espaços públicos, o prefeito cita a Praça CEU (Centro de Artes e Esportes Unificados), inaugurada em sua gestão. “É um complexo social, cultural, de esporte e lazer para população na Zona Norte, exatamente para que possamos ter equipamentos públicos para que a população, principalmente as crianças e os adolescentes, possa ter locais de ocupação fora do horário de escolas.” Sobre o Travessia, o chefe do Executivo afirma estar diagnosticando as falhas do projeto para melhorar em 2018. “Um dos pontos é fazer com que a população que mora na região mais alta (da Olavo Costa) possa frequentar mais o Travessia.”

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Câmara aposta em abordagem mais ampla do crime

A quantidade de mortes violentas na cidade e o fato de a maioria delas estar ligada à disputa de grupos rivais, tendo o tráfico como pano de fundo, levou a Câmara Municipal a instaurar, no ano passado, uma Comissão Parlamentar de Inquérito, batizada de CPI de Combate às Gangues. Após quase oito meses de trabalho, os vereadores apresentaram relatório em dezembro com uma série de propostas, mas ainda não se sabe se ficarão só no papel. Inicialmente, chegou a ser proposta uma consulta popular sobre a proibição de bailes funks.

Entre as medidas divulgadas também está projeto para criar legislação exigindo estudos de impacto de segurança no entorno dos condomínios do programa Minha Casa, Minha Vida, já que muitos desses, como o Araucárias, na Zona Sul, e o Parque das Águas, na região Norte, acabaram concentrando tragédias por reunir em um mesmo espaço pessoas de regiões e realidades distintas. Elaborar um Fundo Municipal de Segurança, com previsão de verbas para investimento em projetos sociais e melhorias na área, também foi apontado, além de um Seminário de Segurança Pública com o objetivo de reunir diversos setores para discutir o tema junto à população.

“A questão da violência em nosso município, já há algum tempo, integra a ordem do dia. Temos uma comissão permanente de Segurança Pública que vem realizando um trabalho excepcional, além de várias iniciativas da Casa, como realização de um seminário em conjunto com outras entidades (UFJF e OAB-JF) em 2013 e, mais recentemente, a criação de uma CPI, com foco na questão da violência entre gangues. Também aprovamos diversos requerimentos e promovemos mudanças da legislação municipal que trata do assunto”, elenca o presidente da Câmara, Rodrigo Mattos (PSDB).

Para o vereador, no entanto, chama atenção a permanência da questão da violência na pauta durante tanto tempo. “Precisamos de uma abordagem mais ampla do problema. Temos conversado quanto à necessidade de ampliarmos para outras comissões as discussões envolvendo violência, o que já vem ocorrendo em muitas ocasiões”, afirma, completando que a criminalidade passa pelas questões da saúde e educação, além dos direitos humanos, da criança e do adolescente, dos idosos e da mulher.

Ouvir os moradores e saber as reais necessidades

Professora de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da UFJF e coordenadora do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais (NEPCrim), Ellen Rodrigues, considera que o círculo de mortes violentas pode ser quebrado com programas que apostam no aumento das ofertas de escolas, lazer, cursos profissionalizantes, atividades musicais e artísticas, tudo feito em parceria com as famílias e as comunidades, procurando ouvir as reais necessidades e interesses dos moradores e não simplesmente impondo um modelo à força.

“(…) o investimento em ações afirmativas, construídas em conjunto com a comunidade, é o mais acertado caminho para a redução da violência em áreas degradadas e marcadas pelo crime.” Ellen Rodrigues, coordenadora do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais

“Países como EUA, Alemanha, Nova Zelândia, Bélgica e Inglaterra foram pioneiros nessas práticas. Há muitas pesquisas sobre o tema que comprovam que o investimento em ações afirmativas, construídas em conjunto com a comunidade, é o mais acertado caminho para a redução da violência em áreas degradadas e marcadas pelo crime. Mais uma vez no Brasil, e também em Juiz de Fora, as coisas parecem ir na contramão: ao invés de ouvir a comunidade, muitas vezes se chega com um programa já todo definido, cujo desenho é feito por pessoas que desconhecem os processos de socialização da comunidade e, mesmo assim, querem convencer os moradores de que aquilo é o melhor para eles”, pontua Ellen, acrescentando que tal situação é especialmente problemática no município de Juiz de Fora, cuja violência entre jovens é muito marcada pelas brigas entre grupos de bairros rivais.

“Essa é uma característica da cidade e remonta ao processo de urbanização do município, que, atualmente, se vê agravada pelas disputas e conflitos relacionados a pontos de vendas de drogas e à posse de armas.”

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