Professores enfrentam falta de dinheiro e adoecimento
Só este ano foram lançados 2.269 atestados médicos de professores de Juiz de Fora no sistema utilizado pela Superintendência de Saúde do Servidor. A média é de 300 atestados ao mês.
Trabalhadores de educação da rede pública estadual estão, neste momento, condenados a não ter futuro. Desde que o Estado de Minas Gerais iniciou o escalonamento do pagamento dos servidores – um processo que começou em fevereiro de 2016 -, muitos profissionais da área não conseguem mais manter as contas em dia. Além de não saberem a data exata do depósito do salário, o valor tem sido dividido em até três vezes, o que tem levado a um endividamento de muitos servidores ativos e inativos, além de perda da qualidade de vida de 2.418 professores vinculados a uma das 48 escolas da rede estadual em Juiz de Fora. Afetados pela incerteza e pelo desafio diário que é estar em sala de aula, docentes estão passando por episódios de adoecimento. De acordo com informações da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (Seplag), o sistema utilizado pela Superintendência de Saúde do Servidor registrou, só em 2018, o lançamento de 2.269 atestados médicos referentes à categoria em Juiz de Fora. Embora o número não represente o total de professores afastados, – já que mais de um afastamento ao mês ou a licença prorrogada é contabilizada duas ou até mais vezes no sistema -, os dados confirmam o agravamento da saúde física e mental deste grupo. Só em agosto, 311 atestados médicos de professores foram lançados, o que representa mais de dez por dia.
De acordo com a Secretaria de Estado da Saúde, as causas de afastamento do trabalho por licença para tratamento de saúde são diversas e estão relacionadas à saúde vocal, aos transtornos mentais, comportamentais, além de doenças do sistema osteomuscular. No entanto, devido ao sigilo, não é possível contabilizar os números relacionados às doenças que mais levam ao afastamento desses profissionais. Segundo o coordenador do Núcleo Regional de Saúde de Juiz de Fora, Paulo Henrique Dutra Pinto, dos cerca de 55 servidores estaduais que passam diariamente pela perícia para avaliação de admissão e afastamento do trabalho, pelo menos 40 são profissionais da educação.
Para Yara Aquino, diretora do Departamento de Comunicação do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação (Sind-UTE), a crise financeira do Estado, que resultou no escalonamento dos salários, tem causado inúmeros problemas que perpassam, inclusive, pelo sucateamento do plano de saúde dos servidores, no caso o Ipsemg- Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais.
“Os professores estão sem saída. Além da realidade da sala de aula, eles não podem contar com o plano de saúde, porque o Ipsemg está desestruturado e com longas esperas para a marcação de consulta. Além disso, o cartão de medicamento da Rede Aceito, utilizado nas farmácias, está suspenso desde novembro de 2016. Também não podem contar com empréstimos consignados, porque as linhas de crédito foram suspensas pelos bancos e financeiras. O parcelamento de salário é uma situação vergonhosa. Ninguém pode pagar um aluguel ou conta de luz em três vezes. Diante desse cenário não tem como o trabalhador estar bem de saúde, nem física, nem emocionalmente. Estamos falando da sobrevivência deles”, denuncia.
“Déficit”
De acordo com a Secretaria de Estado de Fazenda de Minas Gerais, a decisão de escalonar os salários está diretamente atrelada ao “déficit deixado pela gestão anterior e à atual crise econômica que afeta o país”. O órgão informou que um dos objetivos do governo é colocar fim ao escalonamento dos salários. “O assunto tem sido amplamente discutido pela Comissão de Acompanhamento da Folha de Pessoal, formada por representantes do governo e dos sindicatos dos servidores. Porém, o déficit da Previdência é outro problema que agrava a situação. Atualmente, são arrecadados R$ 5,5 bilhões em contribuições patronal e de servidores, mas, como a folha de pagamento de aposentados e pensionistas é de R$ 22 bilhões, o déficit previdenciário fica em R$ 16,5 bilhões”, informou a assessoria de imprensa da Fazenda.
Já o Ipsemg citou em nota a crise financeira do Estado e informou que, “à medida da disponibilidade de recursos, mantém os serviços de saúde em todas as regiões para atender os beneficiários”.
Vice-diretor abriu mão do lazer para pagar dívidas
A diretora do Departamento de Comunicação do Sind-UTE, Yara Aquino, tocou em um ponto fundamental: sobrevivência. O trabalho, como fonte de renda e ocupação, é uma das principais referências do ser humano. Quando se tem o emprego, mas o pagamento pelas horas trabalhadas torna-se incerto, a vida muda. Neste caso para pior. Adson Franklin dos Santos, 40 anos, vice-diretor da Escola Normal, colégio que conta com três mil alunos, tem sentido na pele o efeito do escalonamento. Mesmo com um salário superior a R$ 3 mil, por conta da vice-direção e do cargo de professor que exerce em outra escola da rede, ele se viu obrigado a enfrentar uma situação de endividamento. “Com o escalonamento, eu recebo a primeira e a segunda parcelas. No princípio, a primeira parcela era de até R$ 3 mil. Quem ganhava mais do que isso recebia o restante em uma segunda e até terceira parcelas. Só que, com o tempo, isso foi complicando, por causa do atraso no pagamento. Se antes a gente recebia no quinto dia útil, hoje passou a receber no dia 14, 15, 16. Então é incerto, a gente não sabe quando vai ser depositada a primeira parcela, e os compromissos são sempre nos primeiros dias do mês: a fatura de cartão, o aluguel, que eu tive que passar para uma outra data. Passei a acumular dívidas, porque usei tanto o cheque especial, quanto o cartão de crédito. Por causa disso, precisei pedir dinheiro emprestado a dois amigos. Além disso, tenho dois empréstimos no banco. É uma bola de neve”, admite Adson, que pretende usar o 13º salário para quitar uma das dívidas – o empréstimo feito com um amigo. O problema é que o 13º também foi parcelado em quatro vezes, e não sabemos como será o deste ano. Do valor que ele não sabe quando vai receber terá que ser abatido R$ 800, quantia que Adson antecipou para pagar os juros do cartão de crédito e do cheque especial.
Cortes drásticos
Na tentativa de equilibrar as contas, o vice-diretor abandonou as aulas de ioga e de natação. Também reduziu, drasticamente, as saídas aos finais de semana. “Tenho 12 anos no estado e acho que este é o pior momento. Além disso, tudo foi ficando mais caro. As compras de supermercado dobraram de preço. Antes eu saía mais para me divertir, ia ao cinema, barzinho, mas cortei uma série de coisas justamente por causa desse acúmulo de dívida. Antes, na primeira parcela do escalonamento, ele (o Estado) pagava R$ 3 mil. Depois passou a depositar R$ 1.500, o que deixou a situação ainda pior. No mês passado, depositou R$ 3 mil. A única coisa que eu conseguia pagar primeiro era meu aluguel, mas as outras coisas eu deixei rolando. Meu maior medo era ficar com o nome negativado, e isso só não aconteceu, porque peguei dinheiro emprestado com amigos”, comenta.
Segundo o vice-diretor, a função que exerce hoje impõe uma hierarquia em relação aos outros colegas, o que o deixa em situação muito delicada. “É chato pra mim, que estou passando pela mesma situação. Sei que estou sendo aviltado também”, diz.
Só no dia desta entrevista, três professores faltaram à escola por motivo de saúde.
Sonho de começar a vida nova interrompido
Quando Henrique Louro Ad’vincula, 26 anos, foi para a sala de aula, ele encontrou sua vocação. Há três anos, ele é servidor do Estado, dois deles como efetivo. Sua nomeação saiu em dezembro de 2016, mas, desde fevereiro daquele ano, ele já ensinava biologia para estudantes do ensino fundamental e médio. Hoje com 31 aulas, além de 14 turmas, Henrique conseguiu chegar a um salário de R$ 3.500. Mas o sonho de começar uma nova vida foi interrompido pelo escalonamento do salário em até três parcelas mensais. Por conta da divisão, o professor chegou a pagar, em um único mês, mais de R$ 700 de juros por causa do atraso de contas, entre elas o financiamento da moto cuja multa diária por parcela atrasada é de R$ 10. “Como não vou deixar de comer, foco nas necessidades básicas. O que posso deixar, vou deixando, mas o juros arrebentam com a gente. É horrível. É desestimulante. Eu dou aula porque gosto muito do que faço, mas o que mais falta para a gente é qualidade de vida”, desabafa.
Henrique conta que, por causa de uma reforma na casa onde morava, ele precisou adiantar o 13º salário em 2017. No entanto, o dinheiro, recebido em três vezes, foi descontado integralmente de sua conta, o que o obrigou a negociar com o banco. O resultado disso foi a divisão da dívida em 24 parcelas, ou seja, o professor pagará até 2019 o 13º antecipado em outubro de 2017. “Eu não posso me programar para fazer qualquer coisa ao longo do mês. Não dá para viver sobre pressão e não saber quando vou receber no mês seguinte, porque não tem uma escala com projeção para os meses seguintes. Desde que comecei a trabalhar, eu nunca recebi no quinto dia útil. Eu tenho que guardar alguma coisa para começar o mês seguinte, porque eu não sei quando vou receber. Tem mês que recebo no dia 17, no outro dia 20. Eu entendo que a gente passa por uma situação muito ruim no país, mas não justifica. A saúde e a segurança pública recebem os R$ 3 mil na primeira parcela. O restante, ou seja, nós, recebemos de qualquer forma. O meu salário é todo contado. Eu fico escolhendo o que vou fazer no mês para me divertir dentro daquilo que posso gastar. Não sobra nada. Não posso fazer uma viagem, não posso me programar para comprar alguma coisa, tenho que comprar sempre a perder de vista para poder ter alguma coisa.”
Dedicação
Mesmo diante do cenário atual, Henrique criou um Quiz no Instagram para atrair a atenção dos alunos para sua matéria. Toda semana, ele elabora uma pergunta e posta nas redes sociais com duas opções de resposta. No dia seguinte, libera o gabarito para os alunos conferirem. O resultado desse esforço tem sido sentido na sala de aula e nos número de seguidores que acompanha o professor, mais de 700. “Pensei: preciso criar uma coisa útil, porque esses meninos passam mais tempo no telefone do que tudo. Tenho que criar uma coisa que possa instigá-los e que os faça gostar pelo menos um pouquinho da minha aula. Isso acabou melhorando muito o meu ritmo de sala de aula e o meu relacionamento com eles. O que me traz para a escola de manhã são os meus alunos, porque tenho turmas maravilhosas. São meninos engajados politicamente, que têm uma identidade social muito grande e que correm atrás de verdade”, elogia.
‘Vejo o meu direito sequestrado’
Se a situação dos servidores ativos já é difícil, a dos inativos parece ainda mais. Maria Rita Vargas Torres, 64 anos, passou 25 anos de sua vida na educação. Aposentou-se em 2007 com apenas um vínculo na rede estadual. De 1982 a 2007, ela trabalhou com a suplência, foi professora alfabetizadora, vice-diretora, depois diretora por três mandatos na Escola Estadual Professor Lindolfo Gomes. Lutou pela qualidade da merenda, pela valorização do professor, por condições de acesso mais dignas para os alunos. “Fiquei de 1992 a 2000 na direção. Três mandatos. Era uma época de parceria com os professores, com a comunidade. Uma época nova, de mudança, de valorização do professor, com excelentes secretários de Educação. Não faltava nada nas escolas, nem material, nem merenda. Os alunos ganhavam caderno, lápis, borracha, material de secretaria e comiam até salada de fruta com uva após as refeições. Dei a vida pela educação. Trabalhei mesmo. Quando diretora, chegava às 6h30 na escola e saía às 23h. Hoje, no entanto, não sei o que posso fazer com o meu próprio dinheiro. Vejo o meu direito sequestrado”, indigna-se.
Filha de servidores públicos, Maria Rita seguiu os passos da mãe, que também era professora estadual. Já o pai era coletor municipal, função exercida hoje pelos secretários de Fazenda. “Cresci com senso de coletividade, de honestidade, vendo meu pai mexer com o dinheiro público, porque era coletor municipal em Volta Grande. Aprendi a valorização do que é público. Hoje, no entanto, como aposentada, a insegurança é muito grande. Antes recebia religiosamente dia 15, depois passou para o quinto dia útil e aquilo era sagrado. Eu jogava todas as minhas contas para o dia 10. E agora estamos vivendo uma época horrível. Alguns profissionais recebem de duas vezes, outros de três. Os inativos da educação ficam por último. Eu sinto que ele (o governo) sequestra um pouco do meu salário para pagar outra categoria, isso é violação da minha privacidade. A Assembleia recebe no quinto dia útil, a magistratura recebe no dia 30 de cada mês, e nós? Eu dei a vida pela educação. Qual a diferença da segurança pública para mim? O soldado passou pelas minhas mãos. Nós, professores, ajudamos os alunos a serem questionadores, a formar o senso crítico”, desabafa.
Com o escalonamento do salário, Maria Rita admite que deixa de sair de casa, para não gastar. “Evito gastar, porque não sei se no mês que vem tem, aí não posso planejar. Quero planejar uma viagem agora, mas não sei se eu posso. É uma vida sem futuro.”
A Secretaria de Estado de Fazenda de Minas Gerais afirmou que não há favorecimento de uma categoria em detrimento de outras. “Vale ressaltar que o escalonamento, implantado a partir de fevereiro de 2016, não abrange apenas os professores, mas todos os servidores do Executivo Estadual.”