Crack aparece em 80% dos processos de homicídio

Na quarta reportagem da série “Vidas perdidas”, o juiz Paulo Tristão detalha o funcionamento do Tribunal do Júri e aponta que o entorpecente aparece na maioria dos cerca de 400 crimes contra a vida julgados desde junho de 2015


Por Sandra Zanella

11/01/2018 às 07h00- Atualizada 12/01/2018 às 19h01

O crack está presente em 80% dos cerca de 400 processos de crimes contra a vida julgados no Tribunal do Júri nos últimos dois anos e meio. O cálculo revelador é apontado pelo juiz e diretor do Fórum Benjamin Colucci, Paulo Tristão. Desde meados de 2015, ele preside as sessões que levaram mais de 500 acusados de homicídios e tentativas de assassinato ao banco dos réus. Até o dia 12 de dezembro, os julgamentos resultaram em 355 condenações e 154 absolvições. Se somadas, as penas ultrapassam 3.080 anos (ver quadro). “Nosso trabalho se resume a essas causas: disputas, rivalidades e o crack por trás”, expõe o magistrado, delimitando ainda mais a estatística da Polícia Civil de que 90% das mortes violentas no município estariam ligadas ao tráfico de drogas. “Se você tirasse a palavra crack dos processos, sobrariam poucos. O crack aparece nos interrogatórios e depoimentos testemunhais, invariavelmente”, reforça, traçando outro perfil: “Tanto homicidas quanto vítimas são jovens, às vezes, até menores de 18 anos, pardos ou negros, moradores de bairros com relevantes problemas sociais.”

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Na quarta reportagem da série “Vidas perdidas – um raio X dos homicídios em JF”, a Tribuna detalha o que seria o epílogo do homicídio: o julgamento. A ideia é evidenciar todos os elementos que compõem esse desfecho do crime, desde as principais motivações por trás de cada tiro disparado apresentadas no Tribunal do Júri, passando pelos jurados que integram o conselho de sentença e chegando à percepção do próprio juiz, que esteve frente a frente com centenas de acusados de ações criminosas, muitas delas bárbaras.

”Se você tirasse a palavra crack dos processos, sobrariam poucos. O crack aparece nos interrogatórios e depoimentos testemunhais, invariavelmente”, Paulo Tristão. (Foto: Olavo Prazeres)

Enquanto no ano passado 137 pessoas perderam a vida de forma violenta, pelo menos 146 réus de crimes dolosos contra a vida foram julgados em 106 processos, sendo 109 condenados e 34 absolvidos. As penas chegaram a 1.254 anos e três meses. “Temos feito júris diariamente”, destaca o magistrado, mostrando extrema vontade de reverter aquela impressão de justiça morosa. Com exceção de um caso de aborto, todos os julgamentos presididos por Paulo Tristão foram relacionados a homicídios e tentativas de assassinato, às vezes conexos com outros delitos, sendo os mais comuns tráfico de drogas ou corrupção de menores. O Tribunal, no entanto, não recebe casos de latrocínio (roubo seguido de morte). “Não é crime doloso contra a vida, é crime contra o patrimônio”, esclarece. “Ele está visando roubar e, se precisar, vai matar. Já o objetivo principal do homicídio é a morte.”

O arrependimento comum na dramaturgia não costuma integrar o cotidiano do Tribunal. “Os réus muitas vezes negam. E os que confessam procuram dar as suas justificativas, seja para excluir uma condenação, seja para amenizar sua conduta. Muito raramente alguém diz: ‘Eu errei mesmo, eu me arrependo’. Todo mundo age por algum motivo, seja justificável ou não, reprovável ou não”, avalia o magistrado. Tudo isso leva ao sentimento de banalização da vida. “Esses jovens usuários de drogas, que formam gangues e estão nessa rivalidade, matam e estão dispostos a morrer com muita facilidade.”

Vinganças por assassinatos ocorrem de lado a lado

Questionado sobre a principal causa de tantos homicídios, principalmente nos últimos seis anos, quando Juiz de Fora viu praticamente dobrar o número de assassinatos, mantendo posteriormente a média de dois ou três crimes fatais por dia, juiz Paulo Tristão é enfático: “Não tenho dúvida em dizer: é a rivalidade entre bairros. E imagino que não seja uma mera rivalidade de rapazes que residem em um bairro contra rapazes que residem em outro, cuja origem da desavença eles nem sabem mais, mas agem como se fossem uma torcida de futebol rival, em todos os sentidos. Não é só isso. Porque eles têm quase o mesmo nível de vida, de condição social, são brasileiros da mesma forma, são juiz-foranos, às vezes torcem até pelo mesmo time. A rivalidade que eu vejo aqui no Tribunal do Júri tem muito a ver com as disputas de tráfico e, decorrente também disso, as vinganças pelos homicídios que vão ocorrendo de lado a lado.”

Como exemplo dessa dinâmica das brigas por territórios promovidas pelas gangues e associadas ao entorpecente, o magistrado citou os assassinatos na Vila Olavo Costa, bairro recordista de homicídios no ano passado, totalizando 11 das 137 mortes violentas contabilizadas pela Tribuna no ano passado, conforme mostrou a primeira reportagem da série “Vidas perdidas – um raio X dos homicídios em JF“. A estatística leva em conta os óbitos ocorridos nos hospitais em decorrência de crimes e também casos de latrocínio (roubo seguido de morte). “Tem um grupo envolvido com o tráfico no alto da Olavo Costa. Mata-se alguém lá. Eles revidam com alguém da parte de baixo, que, muitas vezes, nem envolvimento com droga tem. Pelo menos não com o tráfico. Às vezes são usuários. Ou basta ser morador daquela parte do bairro ou de outro considerado rival. O pano de fundo disso tudo chama-se droga. E hoje pouco ouvimos falar de cocaína e muito menos de maconha. O que a gente ouve é crack. É a droga que, por sua característica de necessidade quase instantânea e que incapacita a pessoa para qualquer tipo de atividade, seja profissional ou estudantil, leva também à prática de crimes contra o patrimônio”, explica o juiz, detalhando um dos mecanismos da violência.

Para o presidente do Tribunal do Júri, o crack não só pode ter contribuído para o aumento dos assassinatos, como também para a mudança das características dos atentados contra a vida. “Aqueles crimes que antigamente aconteciam, de certa forma românticos, como uma briga de bar e ciúmes por causa de mulher, quase já não vemos.” Como alguns réus confessam de forma detalhada o delito, muitos casos chamaram a atenção “pela crueldade, pela violência desmedida, pela maneira como a vítima foi morta, pela insensibilidade daqueles que mataram”. “O que espanta também, mas é justificável, é a naturalidade com que os menores confessam crimes bárbaros e assumem a responsabilidade em nome dos maiores, ou, muitas vezes, são captados por eles para o cometimento do delito”, diz o juiz, acrescentando que os adolescentes sabem de seus direitos e os utilizam até a véspera da maioridade. “Com 17 anos, o máximo que ele pode pegar pelo ato infracional mais grave que praticar é três anos de internamento. Assim mesmo, com psicólogo avaliando a cada seis meses e possibilidade de sair antes dos três. Mas poucas horas depois de completar 18 anos, as consequências com o mesmo ato pode ser de 20 anos (de prisão) ou mais.”

“Quem decide são os jurados”

O juiz calcula a pena e assina a sentença, mas não é ele quem opta pela condenação ou absolvição de um réu nos casos de crimes dolosos contra a vida. “Não há ninguém mais importante no Tribunal do Júri do que os jurados. Eles que decidem”, afirma o diretor do Fórum Benjamin Colucci, Paulo Tristão. “Eles representam o estado no Poder Judiciário e têm toda a soberania. Já aconteceu de o Ministério Público pedir uma coisa, a defesa pedir a mesma coisa, e decidirem de forma diferente.” Apesar de presidir o júri, fornecendo elementos para os jurados conhecerem o processo, o magistrado não pode se manifestar. “O promotor pode argumentar e deve. A defesa também argumenta pedindo votos. E é com sim ou não às perguntas que eu faço que eles vão decidir.”

Para cada sessão são convocados 25 jurados, do total de 900 cadastrados, conforme a população da cidade. “Temos uma urna com 900 nomes para o ano. A cada mês, sorteamos 25, às vezes 30. Para a abertura do júri, nós precisamos ter pelo menos a presença de 15. Menos do que isso, só se as partes permitirem. Senão, temos que passar para outro dia”, explica o juiz. Com o júri aberto, acontece outro sorteio. “A defesa tem direito a três recursos, e o MP também. O conselho de sentença é formado por sete jurados.” Ainda conforme a regra, no período de 30 dias, continuam atuando os mesmos 25. “Pode ser que quem trabalhou hoje, trabalhe amanhã. E pode ser que alguém (do grupo) não seja sorteado nem uma vez. Tem pessoa que participa de quase todo júri durante o mês inteiro.” O escalado para aqueles 30 dias fica dispensado de trabalhar no Tribunal por um ano.

Segundo o magistrado, alguns jurados atuam por vontade própria, outros são convocados. “Nós preferiríamos trabalhar com voluntários. Mas não conseguimos 900. Muitos são estudantes de direito. Então captamos outros nomes do serviço público federal, estadual e municipal. Damos preferência a quem exerce função pública, mas também temos comerciantes, cabeleireiros, bancários, aposentados. Essa mistura que ajuda a equilibrar e dar uma sentença.” O trabalho é um serviço público obrigatório. “Mas nós reconhecemos que todos eles deixaram seus afazeres profissionais e pessoais para comparecer gratuitamente, permanecendo à nossa disposição durante um mês.” Com isso, a Justiça tenta ser de certa forma maleável para conciliar a agenda dos jurados com os julgamentos, de forma que o trabalho não pare. “Precisamos manter a Vara do Tribunal do Júri em funcionamento, porque são os crimes mais graves, os dolosos contra a vida, e ao mesmo tempo permitir que tenham a vida de forma regular.”

Para mostrar como é soberana a opção dos jurados, Paulo Tristão explica que, mesmo quando a decisão é manifestamente contrária às provas dos autos, é convocado novo júri, com outros sete integrantes. “Mas se eles decidirem da mesma forma, ninguém muda. Por isso têm que ter responsabilidade.” De acordo com o magistrado, apenas quatro votos são revelados, mantendo o sigilo da votação. “Isso dá tranquilidade e segurança.”

Caso marcante e julgamento mais longo

O caso que mais marcou Paulo Tristão desde que ele assumiu o Tribunal do Júri, em junho de 2015, foi o julgamento do advogado Rodrigo José Liguori de Oliveira, 40 anos, pelo assassinato de três mulheres da sua própria família, de 85, 78 e 19 anos, ocorrido em setembro de 2016, menos de três meses após o crime. O corpo de Maria Aparecida Liguori de Cerqueira, 85, tia do acusado, foi o primeiro a ser encontrado em seu apartamento no Calçadão da Rua Halfeld, no Centro, no dia 29 de junho daquele ano. Cerca de duas horas depois, as outras duas mulheres Elizabeth Philomena Liguori de Oliveira, 78, e Lara Amaral Liguori de Oliveira, 19, que eram mãe e sobrinha do suspeito, foram achadas mortas em um apartamento na Rua Dom Viçoso, no Alto dos Passos, Zona Sul. O acusado teria problemas psiquiátricos desde os 20 anos e foi preso no mesmo dia.

“Fizemos a audiência com muita rapidez. Estavam todos os familiares das vítimas. Ele falou com detalhes, do início até o final, tudo o que fez.” O advogado foi considerado inimputável, com sentença baseada no laudo dos médicos peritos do Estado que o consideraram incapaz de receber e cumprir pena em penitenciária, mas recebeu medida de segurança para internação em um hospital adequado.

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Já o júri mais longo presidido por Paulo Tristão começou às 9h do dia 30 de agosto de 2016 e só terminou na noite do dia 31, com intervalo para dormir. O caso considerado um dos mais longos da história de Juiz de Fora foi o da empresária Maria Regina de Souza Fellet Delmonte, 43, e do vendedor Heitor da Silva Munch, 34, condenados a 14 anos de prisão em regime fechado por homicídio duplamente qualificado no caso do professor Bernardo Tostes Cardoso de Paula Monteiro. Ele foi encontrado morto, aos 33 anos, amarrado na cobertura do apartamento da empresária, na Avenida Olegário Maciel, no Paineiras, em de 3 de junho de 2012. Os réus receberam o direito de recorrer em liberdade junto ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

Conforme Paulo Tristão, os prazos para que os homicídios sejam julgados são muitos variáveis por diversos fatores, passando pela localização do réu, sua intimação e os atos praticados pela defesa. “Teve processo que demorou dez anos e outros foram julgados em alguns meses. Mas quando o réu está preso temos que fazer com muito mais rapidez.”

Problema social

Na visão do juiz, quando tentamos buscar uma causa para essa absurda violência que acaba com a vida de tantos jovens em Juiz de Fora – mais da metade das vítimas em 2017 tinham até 25 anos -, a droga aparece em primeiro lugar. “É o elemento mais importante. Aí vem a perda de diversos valores, como familiares, sociais e morais.” Diante da constatação, para combater os crimes dolosos contra a vida, “não basta só o Judiciário, não basta só as polícias Militar e Civil, não basta só o Estado de Minas. Precisa de alguém que consiga englobar tudo isso e ter uma visão de conjunto para solução. É um problema social.”

Sobre uma possível sensação de impunidade, mesmo com todo o trabalho, o diretor do Fórum analisa: “Se fazendo júri todo dia ainda está desse jeito, imagina se parar? A decisão dos jurados irradia para a cidade toda. Na mesma hora tem uma repercussão nas famílias do réu e da vítima, no local em que o fato aconteceu e nas penitenciárias. Isso tudo aumenta a percepção de que, pelo menos, o crime está sendo julgado. O mais importante para mim é levar a julgamento. Ser condenado ou absolvido é consequência.”

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