Passo final na indústria da loucura


Por Daniela Arbex

02/11/2014 às 07h00- Atualizada 03/11/2014 às 08h27

vida-olavoQuando o grupo chegou ao endereço da Rua Espírito Santo, no Centro, chamou a atenção de quem passava pela via. Os olhares destreinados na arte de enxergar os socialmente invisíveis exibiam incômodo. Pouco interessados no espanto alheio, dez homens que experimentaram uma existência de segregação em internações psiquiátricas de longa permanência tinham um compromisso inadiável com o futuro: conhecer a casa onde iriam morar sem amarras. Juntos, eles passaram pelo portão que dá acesso a um conjunto de apartamentos, mas, desta vez, as grades não estavam lá para proteger a sociedade da loucura deles e, sim, para afastar a violência urbana que, democraticamente, atinge a todos. Moradores de uma das dez novas residências terapêuticas em implantação no município até o final do ano, quando cem pessoas deixarão de ser pacientes da Casa de Saúde Esperança para tornarem-se usuários de serviços da cidade, eles inauguram, com atraso, uma nova fase na saúde mental: a do tratamento em liberdade.

Chegada de novo lar traz a expectativa da retomada de um cotidiano que se perdeu

A partir de hoje, a Tribuna publica a série “Vidas roubadas”, que pretende discutir o processo de desinstitucionalização que desafia a cultura manicomial de Juiz de Fora, cidade conhecida por integrar o corredor da loucura, formado também por Barbacena e Belo Horizonte. Na década de 1980, os três municípios respondiam por 80% dos leitos psiquiátricos disponíveis no estado. Nesta época, os macro-hospícios somavam aqui quase dois mil leitos (ver quadro na página 4), a maior parte deles ocupado por pessoas que tinham como principal doença o abandono social. Trinta anos depois, restam 224 vagas na Casa de Saúde Esperança. Fundada em 1939, a unidade que está sob a gestão do Município constitui o último hospital psiquiátrico em funcionamento na cidade. A retirada dos pacientes cronificados é o passo final para o encerramento do capítulo da indústria da loucura, quando sete unidades psiquiátricas funcionavam a todo vapor, embora com qualidade questionável.

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Alvo de denúncias de maus-tratos e precariedade ao longo do tempo, esses hospitais não resistiram às sucessivas denúncias e também às avaliações do Ministério da Saúde, cujos técnicos constataram atendimento abaixo do mínimo aceitável. “Como as cidades que têm parque manicomial, o município tinha uma convivência muito pacífica com os seus hospitais psiquiátricos. A maioria dos doentes foi cronificado. Por isso, não há como diferenciar a doença mental da doença da instituição”, aponta a chefe do Departamento de Saúde Mental da Secretaria de Saúde, Andréia Stenner. Ela destaca que uma das principais propostas da reforma psiquiátrica é a extinção de leitos psiquiátricos de baixa qualidade – um modelo considerado segregador -, para a construção de serviços territorializados, inseridos dentro da comunidade, que visem à preservação do convívio social. Outra vertente é a garantia da oferta de leitos de referência em saúde mental nos hospitais gerais.

Mas onde estão os pacientes das instituições que foram fechadas ao longo do tempo? Como eles sobrevivem fora dos muros hospitalares? Qual é a situação da rede de serviços que se propõe a construir modelos mais humanizados de assistência e o que fazer para atender pessoas em surto dentro dessa nova realidade? Durante 30 dias, a Tribuna tentou encontrar respostas para essas questões, dando origem a quatro reportagens sobre o tema. Nenhuma delas, porém, pretende encerrar o assunto. Pelo contrário. Talvez marquem o início de novas dúvidas e discussões.

Para o coordenador nacional de Saúde Mental e Outras Drogas do Ministério da Saúde, Roberto Tykanori, Juiz de Fora, assim como outros municípios brasileiros, passa por um processo de aprendizagem na questão dos direitos da pessoa com transtorno mental. Embora ele veja um descompasso entre aquilo que se pretende fazer e o que está efetivamente em execução na cidade, Tykanori classifica como positivo o engajamento da Secretaria de Saúde e de seus técnicos no processo de desinstitucionalização, que tem como proposta a implantação de serviços capazes de devolver a autonomia do sujeito. “A vontade política só não basta. Tem que trocar o pneu com o carro andando, e isso traz problemas, turbulências no trajeto e nem sempre é tão ágil e fácil como a gente gostaria. Mas os ganhos que se obtêm na construção das Redes de Atenção Psicossocial (Raps), na implantação tanto das residências terapêuticas, quanto dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), vão mudando a cara da cidade”, acredita.

Pacientes passeiam pelos cômodos da nova moradia. Waltencir Medeiros (ao centro) ainda escolheu o quarto e a cama que mais gostou
Grupo visita futura moradia depois de anos de internação

Residência terapêutica: casa nova, vida nova

“Casa nova. Vou ficar chique”, comenta o homem à beira da escada que leva ao segundo piso do imóvel de cinco quartos. Internado por 31 anos, o paciente não lembra a própria idade e também não consegue dimensionar as perdas que teve. Como o contato social ainda é raridade para José da Silva, a saída do hospital para a primeira visita à residência terapêutica onde vai morar com outros nove pacientes é feita assim, com chinelo de dedo com um pé de cada par. Vestindo peças de roupas emprestadas dos outros internos que ficaram na Casa de Saúde Esperança, onde 159 homens e 61 mulheres ainda estão institucionalizados, ele demonstra curiosidade sobre o novo endereço. No antigo, restam 224 pessoas, mas somente 70 delas recebem visita semanal das famílias, o que corresponde a 31%. Aliás, a perda dos laços afetivos é uma das características das internações de longa permanência. Pacientes que recebem visitas de parentes, mas ainda assim estão institucionalizados há mais de 20 anos, têm a situação de abandono configurada para o Ministério da Saúde.

Esta é uma realidade experimentada pela maioria dos internos do Esperança. E, mesmo vivendo precariamente, muitos deles temem a mudança da antiga rotina. Por isso, a visita ao lugar onde os dez pacientes vão viver daqui para a frente começa tímida. Aos poucos, porém, os candidatos a moradores vão se apropriando do espaço. O processo de reconhecimento de terreno tem continuidade na escolha dos quartos onde eles deverão iniciar o resgate da individualidade. “Eles vêm conhecer a casa antes até da chegada dos móveis. É pensada toda a estratégia para a residência, até em termos de quem vai morar nela. Esse imóvel, por exemplo, foi pensado para pessoas com perfil para morar no Centro, a fim de que possam se beneficiar das atividades do Pró-Idoso, por exemplo. Esse trabalho é feito ainda dentro do hospital, porque o início da adaptação já começa lá dentro”, explica Taísa de Araújo Serpa, psicóloga da Associação Casa Viva.

Primeiras impressões

Nessa primeira visita à residência terapêutica, Waltencir Medeiros, 64 anos, não só elegeu um cômodo, mas sentiu-se à vontade para deitar na cama cujo colchão ainda estava no plástico. Ficou parado por vários minutos, tentando ouvir o que para ele era novidade: o silêncio. Pai de quatro filhos, Waltencir passou pela primeira internação psiquiátrica há 30 anos, em função de problemas com a bebida. Mas o que deveria ter caráter transitório, acabou tornando-se permanente. E, diante da oportunidade de deixar a unidade hospitalar após três décadas, ele resiste. “Queria passar mais um tempo lá, para conseguir pagar a conta da cantina. Devo dois refrigerantes”, diz.

Outro membro do grupo afirma que adorou a casa, mas que não pode ir morar lá. “Não tenho dinheiro para comprá-la”, respondeu, sem compreender de imediato que a mudança marca a nova fase da sua vida. Impressionado com o local, Joel Venâncio destaca os benefícios, embora demonstre receio de deixar o hospital. “Aqui é um lugarzinho muito bom. É limpo. O pior do hospital é que a gente fica preso. Mas na rua é muito perigoso, a gente sofre muito. Já fui muito maltratado por aí.” A psicóloga Kelly Fabiane de Freitas Miranda lembra que o medo é um sentimento comum na sociedade. “Todo mundo tem medo do novo, e eles também. Mas as residências são um resgate da cidadania. Dentro das suas complexidades e do seu perfil, todos são capazes de viver em sociedade. Nesse novo modelo, o que se busca é a humanização da assistência.”

Resgate da juventude

André de Jesus Silva, 31, tem pressa em se mudar. Há cinco anos internado em função de problemas mentais e uso de drogas psicoativas, ele enxerga na residência uma chance de resgatar os anos de juventude perdidos. Animado, percorreu cada canto da residência da Rua Espírito Santo. Quando alcançou a área externa do apartamento, animou-se: “Será que vai dar para fazer churrasquinho aqui?”, questiona, arrancando risos da equipe técnica da ONG Associação Casa Viva, uma das responsáveis pela manutenção, por meio de convênio com a Prefeitura, de dez das 22 residências terapêuticas de Juiz de Fora. Do total, 19 já estão em funcionamento e outras três em processo de implantação.

Para José dos Passos, 54, que já chegou a viver na rua, o novo endereço pode ajudar a superar as dores do passado. “Minha história é triste. Prefiro não contar”, comenta o homem internado pela primeira vez em 1983.

 

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Paciente quer resgatar cidadania

José da Silva, 61 anos, também quer deixar para trás mais de três décadas de isolamento nos hospitais psiquiátricos por onde passou. “Isso é uma casa de verdade”, diz, sorrindo, o homem que nunca teve realmente um lar. Quando criança, Silva e os três irmãos foram abandonados pela mãe e deixados sozinhos em um casebre na Zona Rural de Bicas. Ficaram por dias sem comida e sem a supervisão de um adulto, até que foram resgatados por vizinhos. Logo depois, eles foram separados, já que cada um foi entregue a uma família diferente. Um dos irmãos de José teve as mãos queimadas pela mulher que o criou como forma de castigo após o menino “mexer nas coisas dos outros”.

Já José ficou com Tereza de Paula Oliveira, aposentada que ainda reside em Bicas e hoje tem 76 anos. Segundo ela, o filho de criação teve o primeiro surto psiquiátrico aos 17 anos, quando tentou agredir o marido dela. De Bicas, ele foi mandado para Barbacena, onde foi internado no Hospital Colônia, lugar que registrou a morte de 60 mil pessoas entre 1903 e 1980. “Como lá era muito triste, e ele sentia saudade de nós, eu o trouxe de volta para casa, mas os episódios de violência continuaram”, revela Tereza, mulher analfabeta que passou a vida trabalhando na roça em colheitas de milho e arroz.

Trazido para Juiz de Fora, José passou a morar nos hospitais psiquiátricos. Atualmente, o benefício dele, cerca de um salário mínimo, é recebido pelo marido de Tereza e, segundo ela, gasto na compra de roupas, remédios e contas feitas na cantina das unidades por onde José passou. “Na próxima vez que o visitarmos, vamos levar um radinho. Foi um pedido dele”, comentou Tereza. O rádio não deverá ser entregue na Casa de Saúde Esperança. Agora José da Silva tem endereço.

‘Sem história, eles têm vidas roubadas’

A residência terapêutica tem o objetivo de retomar a autonomia através de conquistas mínimas de um cotidiano que se perdeu. Esta é a forma como a chefe do Departamento de Saúde Mental da Secretaria de Saúde, Andréia Stenner, define o trabalho das moradias assistidas. Todas contam com cuidadores que ajudam a gerir a residência, fazendo o papel de mediadores. Embora o objetivo seja garantir que os moradores tenham, como qualquer outro cidadão, uma rotina doméstica, a contratação de técnicos de enfermagem é exigida por lei, para a garantia dos cuidados clínicos que se fizerem necessários e encaminhamento para a rede de atenção em saúde quando isso se fizer necessário. Outra exigência é que as residências tenham técnicos de nível superior com referência em saúde mental para acompanhar os casos e levantar as demandas psicossociais, que incluem a construção de projetos terapêuticos individuais. Cada residência tem cerca de dez moradores, e sua manutenção custa em média R$ 20 mil por mês, repassados pelo Ministério da Saúde.

De acordo com Taísa de Araújo Serpa, psicóloga da Associação Casa Viva, o passo mais importante na passagem de paciente para morador é a aposta em cada um. “Noventa por cento das pessoas que a gente retira dos hospitais saem de lá com a roupa do corpo. Já chegamos a buscar pessoas descalças. A primeira coisa que fazemos quando eles chegam nas residências terapêuticas é acabar com a uniformidade que ocorre nos manicômios, onde ninguém tem roupa, nem história, onde, literalmente, se tem vidas roubadas. Por isso, o trabalho nas residências é de devolver a cidadania e a autonomia, seja lá qual for a palavra de ordem da reforma psiquiátrica. Não se rompe com a lógica manicomial sem respeito à individualidade.”

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