Entrevista/ Lohana Berkins, travesti e ativista


Por Júlia Pessôa

02/10/2014 às 07h00- Atualizada 03/10/2014 às 10h02

A igualdade de direitos entre gêneros tornou-se ainda mais acirrada no Brasil nesta semana, depois das declarações do candidato Levy Fidelix (PRTB), no último debate entre presidenciáveis, na Record. Entre os ataques, transmitidos em horário nobre da TV aberta, figuraram frases como “dois iguais não fazem filho”, “aparelho excretor não reproduz”. O candidato ainda conclamou o povo a uma luta contra a comunidade LGBTS (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e simpatizantes). “Somos maioria, vamos combater essa minoria.” A postura reacionária suscitou protestos, como o ‘beijaço’ gay na Avenida Paulista, em São Paulo, abaixo-assinados e três representações junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), uma delas feita pela OAB, pedindo a cassação da candidatura de Levy Fidelix, além direito de resposta às declarações homofóbicas.

Uma semana antes de Levy despertar a indignação de boa parte dos brasileiros, a Tribuna conversou com Lohana Berkins, ativista pela igualdade de gêneros que só em sua apresentação faria Fidelix perder os bigodes. “Travesti, desde os 13 anos, fui uma prostituta fina, vivia muito bem e tinha muito dinheiro. Mas só o ativismo deu sentido à minha vida.”Na semana passada, Lohana esteve em Juiz de Fora, participando do Seminário Internacional Corpo Gênero e Sexualidade na UFJF, integrando a mesa-redonda “Corpos, resistências, sexualidades”, assunto sobre o qual tem conhecimento de causa.

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Na Argentina, ela foi fundamental para a conquista de direitos referentes à igualdade de gêneros, impulsionando a sanção de diversas leis que garantem hoje o direito de todas as pessoas trans (travestis, transgêneros e transexuais) terem reconhecida a identidade de gênero e o nome escolhido em seus documentos, além de ter sido a primeira travesti a ocupar um cargo público, quando foi assessora de Patrício Echergaray, então legislador da cidade de Buenos Aires e hoje secretário-geral do Partido Comunista argentino. Atualmente, Lohana mobiliza a comunidade para que as travestis perseguidas e torturadas pela ditadura sejam ressarcidas pelo governo.

Em entrevista à Tribuna, a ativista fala sobre sua história de vida, as diversas faces do preconceito, o cenário político brasileiro e sobre a batalha árdua – e nem por isso menos divertida – pela igualdade de direitos. “Nós ‘travas’ já estamos tão acostumadas com dificuldades que, às vezes, nos matamos de rir ou simplesmente ignoramos situações que para outras pessoas seriam uma tragédia”, diz ela, referindo-se às “travas” sempre com artigos e pronomes femininos, sobretudo com “nosotras”.

Tribuna – Há um movimento na internet, “Lohana Berkins 2015”, que anuncia uma possível candidatura sua à presidência da Argentina. É mesmo uma intenção?

– Lohana Berkins – De certa forma, sim. Queremos justamente reverter e discutir o conceito de cidadania e democracia. Por que não podemos ser presidentas? E o que aconteceria se uma travesti fosse eleita presidenta? É, antes de tudo, uma provocação, um convite à reflexão, mas vou mesmo me candidatar a vice-prefeita de Buenos Aires. Depois, suponhamos que eu ganhe. Quando estiver no poder, as pessoas estarão me criticando por minha condição de travesti ou por causa da minha gestão? A ideia é demonstrar que ‘nosotras’ podemos ocupar qualquer cargo, qualquer lugar e desempenhar qualquer função. Isso toca na raiz de todos os preconceitos que as pessoas têm sobre nós: que só podemos ser prostitutas, que somos violentas, que somos agressivas, vulgares, pouco confiáveis…Temos que desmontar esse preconceito, e afirmar, quantas vezes for preciso, que a capacidade de uma pessoa nada tem a ver com sua identidade de gênero ou orientação sexual.

– E parte deste preconceito já é nítido na avaliação do governo de mulheres, certo? Como Dilma Rousseff, no Brasil, e Cristina Kirchner, na Argentina…
– Na Argentina, quando atacam a presidenta, dizem que é louca, desequilibrada. Depois da morte de seu marido (ex-presidente Néstor Kirchner), diziam que o cérebro do casal era ele. Sempre a crítica vem de um lugar misógino.As mulheres têm uma maneira de fazer política diferente dos homens. Historicamente, eles são educados, adestrados para ocupar a esfera pública. Isso não quer dizer que as mulheres não possam ocupá-la e não devam, mas quando o fazem, possuem um outro olhar sobre as formas de construir a política. Diferente é bom, diferente acrescenta. Há ainda uma distinção crucial quando, em uma função pública, uma pessoa adepta do feminismo está no poder em vez de uma que não o seja. O feminismo como construção teórica e política tem uma visão distinta na forma de questionar e planejar as coisas. E a consciência de gênero não é assumida por todas as mulheres. Não basta ser mulher para ser feminista.

– Na sua opinião, como o preconceito afeta o acesso dos travestis, transexuais e transgêneros a direitos humanos fundamentais, como saúde e educação?
– De uma maneira muito forte. O impacto negativo do preconceito da sociedade contra ‘nosotras’ nega direitos elementares, como saúde, educação, moradia e trabalho, que são básicos em qualquer constituição mundial. Isso é fruto de falsas questões morais da sociedade. Por exemplo, não existe lei alguma que proíba uma travesti de ir à escola, mas há sempre um professor ou professora, diretor ou diretora, que enxerga que ela, como travesti, não pode. Isso impede o exercício pleno de nossa cidadania. Há uma diferença: uma coisa é o que as pessoas podem pensar das travestis, transexuais, ‘transgêneras’, como nos chamamos- e podem pensar o que quiserem! Outra coisa é a violação de nossos direitos humanos em todos os sentidos. Temos que lutar não apenas pela nossa inclusão no sistema, mas também pela permanência dentro dele. É preciso entender que a identidade de gênero e a orientação sexual são questões pessoalíssimas, e em nada devem acarretar na perda de qualquer direito.

– E qual é o caminho para a mudança destas “leis” veladas, ligadas à moral?

– O primeiro que tem que atuar é o Estado, ele deve garantir a real igualdade de direitos, deve gerar políticas públicas de inclusão. Quando uma ‘trava’ é violentada na rua por um policial, ele deve ser sancionado com todo o peso da lei. Porque na realidade é o Estado que deve dizer à sociedade: vamos rediscutir os termos de cidadania e democracia. Hoje quem desempenha esse papel são as instituições. Essa omissão do Estado cria várias situações de ilegalidade. Se o Estado não promove a igualdade, está legitimando e promovendo o contrário: a desigualdade, a violência contra a comunidade de travestis, transexuais e transgêneros.

– Como você acredita que a América Latina pode evoluir no que diz respeito à igualdade de gênero?

– No mundo todo, há algo em torno de nove países que possuem leis de identidade de gênero, e o Brasil e a Argentina estão incluídos. Há que se criar, na verdade, leis gerais que respeitem a identidade de uma pessoa, para mim isso é fundamental. Toda ação que se faça é boa, é positiva, mas o Estado deve gerar um marco legal em que as pessoas estejam perfeitamente amparadas, primeiro reconhecendo sua identidade. E a identidade não é somente uma questão de querer se chamar com o nome de uma mulher, é algo muito mais profundo e complexo. Por que minha vida cotidiana vai ser controlada por todo mundo? Se vou comprar um celular, tenho que explicar minha história de vida para fazer um cadastro? Isso é um ato de violência que nem tem nome. Além de leis, deve-se educar a população não só garantindo que as ‘trans’ possam ir à escola, mas revisando os conteúdos da educação. Se a sociedade continuar sendo binária, só aceitando a concepção de homens como fortes, provedores e machos, e as mulheres como fracas, desprotegidas, amáveis e casadoiras, qualquer coisa que rompa com este padrão é visto como monstruosidade. A primeira coisa a ser questionada e reformulada é o conceito de normal. E cabe ao Estado proteger a todas as pessoas no curso destas mudanças.

 

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– E como as próprias afetadas podem contribuir para este processo?
– Colocando-se como sujeitas da luta pelos seus direitos. Por exemplo, estamos em pleno período eleitoral no Brasil: decida seu candidato. Questione: qual é a proposta concreta que você tem para nossa comunidade? Qual é sua posição frente a este tema? Temos que ser proativas e não só esperar que o Estado nos contemple com nossos direitos. Temos que ser interlocutoras e interpelar todo o tempo o Estado a respeito destes direitos: por que isso é assim? Por que não pode ser diferente? E é fundamental entrar a política, que decide tudo: o pão que comemos, as roupas que usamos, temos que entrar nesse jogo democrático e saber negociar e lutar por propostas claras.

– As travestis são tratadas de maneira diferente na comunidade LGBT?

– Entre ‘nosotras’, não. Mas entre a comunidade gay e lésbica, somos sempre estruturalmente mais pobres, em muito por assumirmos nossa identidade ainda muito jovens. Isso resulta na expulsão do menino ou menina de muitos lugares, então, como consequência, não temos qualquer tipo de escolaridade formal ou informal, o que, consequentemente, faz com que não ocupemos cargos de direção, acadêmicos ou de autoridade. Sou uma das poucas com este privilégio. A maioria não tem moradia digna e sofre de doenças ligadas à pobreza. Outra coisa que não se pode ignorar é que cerca de 90% de ‘nosotras’ acabam tendo experiências de prostituição. Na rua, somos violentadas ao extremo, sofremos abusos de autoridade, acabamos presas ou mortas. Isso tudo torna nossa vida mais difícil. Na verdade, isso são categorias políticas de análise, porque, para mim, uma companheira é uma companheira. Mas a sociedade nos recebe de maneira muito mais dura. É diferente com os gays e as lésbicas, que podem escolher como e quando se assumem. ‘Nosotras’ saltamos aos olhos: estamos aí, em Copacabana, Ipanema (risos). Isso nos leva a um isolamento que tende a nos enfraquecer como comunidade, como classe e culturalmente. Normalmente vivemos sozinhas, ou com outras ‘travas’, em hotéis impessoais e pagando caro, formando espécies de guetos.

– Como você avalia sua trajetória no ativismo?

– Foi uma luta muito dura que, desde o início, desafiou um dos braços mais fortes do Estado: a polícia.  Enfrentamo-na com a campanha “Atacar nunca más”, que ficou muito famosa na Argentina e ajudou muito a reduzir a violência policial contra ‘nosotras’. Tivemos também que lutar contra o feminismo, porque várias ativistas diziam que travestis não podiam ser feministas: “São homens, não pode….” Um escândalo! E aí começamos a falar no transfeminismo. Batalhamos junto ao movimento de direitos humanos, para o reconhecimento de que a violação de direitos das travestis e transgêneros é sim, uma violação de direitos humanos. Mas primeiro tivemos que assumir nossa condição de vítimas, mas não aquela vítima que fica chorando, sofrendo. Não choro por nada, não sofro por nada. Sou uma senhora esplêndida, por favor! (risos) Não há lugar que eu considere que não possa ir, ou cargo que não possa ocupar. Também não sinto culpa de coisa alguma. Também sinto orgulho de ser travesti, se tivesse que optar de novo, escolheria o mesmo destino. Tenho os mesmos problemas que qualquer senhora da minha idade: apaixono-me pela pessoa errada, controlo o que como para não engordar….Não tenho um só deles que seja inerente ao fato de ser travesti. Hoje é maravilhoso poder dizer que quero ser presidenta e ter leis que me garantam isso, ver as ‘travas’ nas escolas, no mercado de trabalho. Outro dia fui a um lugar e uma me atendeu. Parecia que não queria mostrar que era travesti, e então fiquei quieta. No final do atendimento, ela disse: ‘sou igual a você’. E eu pensei: ‘Igual como? Linda como eu? Tão esplêndida quanto? Ou travesti?”

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