(Des) Privilégios


Por Juliana Netto

04/06/2020 às 07h00

Costumo dizer que sou de uma geração privilegiada por testemunhar tantos fatos históricos: a virada de um século, de um milênio, a morte de um Papa, a renúncia de outro, dois impeachments no Brasil – embora não me recorde do primeiro. No esporte, sou do tempo em que a seleção brasileira de futebol disputou três finais seguidas de Copa do Mundo, evento este disputado aqui no país, tal como a Olimpíada, que pude acompanhar in loco. Eu! Em uma abertura de Jogos Olímpicos, dentro do Maracanã. Histórico – mesmo com minhas ressalvas quanto ao pouquíssimo legado deixado pelas competições mais importantes do planeta no nosso país.

Agora, para somar a minha lista de situações inimagináveis, uma pandemia. Dos mesmos moldes – ou até pior – que a centenária Gripe Espanhola, lamentavelmente. De tudo que vivi, certamente isso é, caso fosse possível escolher, o que eu jamais queria presenciar. Ver mortes sendo discutidas como bolões esportivos me dói profundamente e acho que você, leitor, caso tenha lido meus últimos textos, já percebeu.

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E de uns dias para cá, no meio de uma peste mundial, outro acontecimento pelo qual não tenho orgulho nenhum. Muito pelo contrário. É daquelas coisas que, se pudesse, fazia questão de esconder da minha história enquanto ser humana aqui neste planeta Terra.

Após anos e anos de luta racial, de incontáveis vítimas do preconceito, George Floyd, um negro americano, morto por um policial branco, mostra que tal fato, diferentemente de algumas situações extraordinárias que elenquei, se repete rotineiramente mundo afora. Nos Estados Unidos, o ex-atleta de basquete e futebol, amigo de Stephen Jackson. No Brasil, crianças como Ágatha, adolescentes como João Pedro e adultos como o músico Evandro Rosa dos Santos. No esporte, o ex-goleiro do Santos, Aranha; Daniel Alves nos tempos de Barcelona; Dentinho e Taison na Rússia e tantos outros. Todos negros, vítima de uma sociedade que ainda julga o ser humano pela cor da pele. Que mata simplesmente pela pigmentação que carregamos ou não no corpo.

Os protestos se multiplicam, as redes sociais enchem-se de manifestações em repúdio à morte do americano em Mineápolis, jogadores que já retornaram ao futebol solidarizam-se com a família de Floyd. Mas nada o trará de volta.

Para os mais otimistas, o sonho de que o preconceito se vá ligeiramente, assim como o coronavírus. Para pessimistas, como eu, a triste impressão de que esse é um problema de ordem mundial que muitas gerações e culturas, infelizmente, ainda verão.

A não ser que eu esteja enganada e, felizmente neste caso, tenha o privilégio de também testemunhar o dia em que todas as vidas importarão.

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