O mais antigo integrante do Batuque Afro-Brasileiro Nelson Silva

O maestro Sebastião da Mota é defensor das raízes do grupo e da contação das histórias dos negros no país


Por Mauro Morais

24/11/2019 às 06h58

 

Sebastião orgulha-se de manter viva a tradição do Batuque desde que entrou em 1974 (Foto: Fernando Priamo)

“Ô ô ô, ô ô ô, meu sinhozinho levou meu benzinho. Não sei pra onde, pra onde não sei. Meu sinhozinho vendeu meu fiinho. Fiquei chorando, sofrendo fiquei. Xangô, Xangô, já não suporto viver nessa dor. Xangô, Xangô, já não suporto viver nessa dor”, canta Sebastião da Mota, um senhor de 1,84 metros, 76 anos, cabelos grisalhos e ralos, pele negra e voz grave. “Essa música é um lamento da pessoa que sofre para Xangô, ou o nosso Deus, ou Jesus. O negro, após vir para o Brasil, às vezes tinha família e era vendido mesmo assim. As pessoas não compravam quem tinha vínculo familiar, para que não se formassem grupos. Por isso vendiam a mãe para cá, o filho para lá”, explica o homem que desde 2013 assumiu o lugar outrora ocupado pelo homem que dá nome ao Batuque Afro-Brasileiro Nelson Silva. “Sempre me interessei, aprendi os cantos e, com a saída das outras pessoas, passei a assumir”, explica ele, o mais antigo membro do grupo. Aos moldes do mestre, Sebastião canta e conta o sofrimento do povo negro.Dores que carrega como herança e como memória. “No meu tempo, às vezes outra pessoa pegava e a ia registrar as crianças. Conosco aconteceu isso.

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No entanto, cada um de nós, filhos, tem um nome. As pessoas não ligavam muito para essas coisas. Meu sobrenome é do senhor do meu avô”, conta o filho de Eurico Nicolau e Florinda Inês, mostrando a carteira de identidade. “Nasci numa fazenda e fiquei até os 23 anos. Hoje vejo que nós vivemos bem, fomos felizes. Todos os meus irmãos trabalharam lá, e os negros na nossa comunidade eram as pessoas mais fortes. A gente, então, não sofria qualquer discriminação. Isso só vim a perceber depois que saí de lá”, narra ele, que conheceu o racismo quando saiu do círculo negro da fazenda. Foi a luta. “Não conheci meus avós, nem do meu pai, nem da minha mãe, que falavam que a criação deles foi mais difícil. Hoje a gente tem alguma coisa porque faz parte de um desenvolvimento. Graças a Deus tive muita prosperidade na minha vida.”

‘Escravidão e liberdade’

“Ai meu sinhô, tem dó de mim. No meu peito quanta dô. Meu sofrê num tem mais fim!”, cantam os batuqueiros na emocionante “Escravidão e liberdade” apresentada pela primeira vez em Juiz de Fora em 1964, pouco antes da chegada de Sebastião, homem cujo registro tem como cidade natal a pequena Tabuleiro do Pomba, onde ele viveu com os pais e os 11 irmãos, todos trabalhando na lavoura. Aos 23, já casado, mudou-se para Juiz de Fora. “Procurava melhor emprego. Para iniciar, trabalhei no Curtume Krambeck. Eu atuava na secagem, num processo violento pra caramba. A construção do couro é pesada. Eu ficava na estufa de vidro, esticando a pele e secando. Era corrido. Quando cheguei e olhei o serviço, pensei: será que aguento ficar três meses trabalhando aqui? Tinha frio, calor, poluição. A gente não sabe de nada da vida. Fiquei 20 anos trabalhando nesse lugar. Fiz dois cursinhos na construção civil. Saí de lá e fui trabalhar na Empav por mais 22 anos, como oficial de obras. Aposentei lá”, recorda-se. O primeiro endereço de Sebastião foi o Bairro Dom Bosco. Passou por outros bairros e hoje se fixou no Granjas Bethânia, numa casa pequena, cuja sala ostenta fotos de uma família que se fez pelos laços de sangue ou de amor. No primeiro casamento permaneceu por 19 anos e teve três filhos, que lhe deram três netos. No segundo, viveu mais 22 anos até tornar-se viúvo. Há pouco mais de dois anos, conheceu a cozinheira e salgadeira Maria Aparecida. Era aluna do Batuque. Depois de cinco meses cantando as mesmas músicas, passaram a viver a mesma vida. “Eu estava muito sozinha e fui fazer um curso de informática e dali resolvi ir para o grupo. Sou coordenadora de ala do Partido Alto, fui presidente do departamento feminino”, conta ela, mãe de três e avó de quatro.

‘Maculelê’

“Vamos todos a louvar. A nossa nação brasileira. Salve a Princesa Isabel (Ó meu Deus!), que nos livrou do cativeiro”, exalta “Maculelê”, uma das principais canções do repertório do Batuque quando Sebastião passou a integrar o grupo. “Fiquei conhecendo na época que teve um show das chacretes na (quadra) Feliz Lembrança, onde hoje é o (viaduto) Augusto Franco. Veio também um grupo para apresentar músicas de todos os lugares do mundo. Ali conheci o Batuque e, em 1974, entrei para o grupo. Eu tinha uns amigos na área do samba, desfilava na Feliz Lembrança, entrei para o Coral Santo Antônio e decidi integrar o Batuque também”, lembra, trazendo à memória, ainda, as apresentações vigorosas e a figura de Nelson Silva. “Era gente boa para caramba e muito inteligente. Ele sabia muito. Recordo dele mais pelo jeito de oferecer os ensinamentos”, narra, lembrando-se, ainda, da figura de José Carlos de Lery Guimarães, jornalista e sambista que atuou na diretoria do grupo. Na época, recorda-se, a diretoria do grupo era branca, o que só mudou na década de 1990, quando os próprios integrantes passaram a assumir o posto.

‘Redenção’

“Bendito seja o pranto meu. Louvado seja o que Deus me deu”, compôs Nelson Silva em 1967 sob o título de “Redenção”. Tombado como patrimônio imaterial juiz-forano, o Batuque, segundo Sebastião, mudou com a passagem dos anos.

“Mudou a linguagem. Nós tínhamos um histórico de cada música, que fala de uma coisa da história do Brasil. O novo Batuque esconde isso e não fala mais. O pessoal quer taxar a época que a música foi feita. O Batuque não envolve política. Não é grupo de dança. Foi criado para contar a história de todo o contexto do negro”, lamenta ele. “Já participei de um encontro internacional da raça, no Império Serrano, e posso afirmar que esse material é diferente de tudo o que a gente possa ver”, acrescenta. Dona de uma potência expressa nos pés descalços sobre os palcos, a entidade enfrenta a dificuldade de não possuir sede própria atualmente e não gozar de recursos para sua manutenção. “Quantas vezes já fiz apresentação com o Batuque, e a comunidade não gostava e chamava a polícia? Mas tínhamos imunidade para trabalhar”, conta o veterano batuqueiro, referindo-se à estreita relação que o grupo tinha com a Prefeitura e o cenário atual de independência. Resiste porque é resistência e é paixão antiga, de Sebastião e de todos os outros integrantes. “Samba mesmo gosto de todos. Não gosto é da falsificação que fazem, o pagode. Lá em Tabuleiro eu já conhecia o samba. Eu tinha ainda 17 anos, e uma turma de Campos tocava naquela época. A gente gostava das músicas. Sempre gostei.”

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