Marcelo Nick: Uma vida entre a tecnologia e o zen budismo

Tradutor de jogos eletrônicos, imerso no universo de distrações da tecnologia, Marcelo encontrou a calma no budismo e em Juiz de Fora, onde se tornou, também, facilitador de meditação e estudos budistas


Por Mauro Morais

16/09/2018 às 10h00

Marcelo Nick mudou-se para Juiz de Fora há cinco anos, conheceu o budismo e hoje facilita a meditação no Centro de Estudos Budistas Bodisatva, numa sala no Calçadão. (Fotos: Olavo Prazeres)

“Se você tentar domar um cavalo selvagem à força, vai machucá-lo e se machucar. Mas se você der bastante corda para o cavalo, deixando que ele circule, e for puxando aos poucos, ele acaba se amansando. O trabalho com a mente é assim.” Marcelo Nick utiliza-se de uma metáfora conhecida no budismo para explicar o exercício de aquietar-se, diminuindo o ritmo e permitindo que as percepções de si e do mundo cresçam. “Nossa mente é muito distraída. Acho que todo mundo já passou pela experiência de trabalhar, trabalhar e trabalhar, e quando chega a noite, deita e não consegue dormir porque a mente está a mil. Passamos o dia inteiro distraídos e, no momento em que a gente pausa e relaxa, todos os pensamentos que já estavam ali aparecem. A mente de todo mundo é assim. E a meditação ajuda a reconhecer isso e ir se acalmando”, defende ele.

“A meditação abre espaço para a gente ver o que aparece na nossa mente, o que estamos sentindo, as nossas emoções, e nos permite olhar para os outros de verdade. Vemos os nossos automatismos. Às vezes agimos muito no piloto automático e só nos damos conta de que magoamos alguém muito depois. Mas se temos o espaço do silêncio, temos mais habilidade para ver as ações antes de fazê-las. Não é se tornar uma mosca morta ou aceitar qualquer coisa, mas ter respostas mais hábeis. Se sabemos que algo não funciona, precisamos responder de outra forma aos estímulos que surgem”, reforça o homem de 35 anos, cinco deles morando em Juiz de Fora, para onde se mudou com o desejo de encontrar a calma. Deparou-se com o budismo.

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Marcelo era gerente de projetos num escritório de tradução em Teresópolis. Junto da esposa Jéssica, do filho Sebastian e de dois cachorros, escolheu recomeçar uma vida em que pudesse, pausadamente, respirar. “Eu tinha muita gente para supervisionar, muita cobrança de prazo e produção. Eu embarquei naquela onda e quando vi já estava trabalhando de segunda a sábado, chegando cedo e saindo tarde, não dando atenção à família, nem à saúde. Num momento vi que não daria certo. Foi uma decisão difícil, mas, por sorte, tive o apoio da minha esposa. Era um emprego bom, com um salário bom e benefícios. Largar tudo aquilo para ser autônomo de repente para muita gente é um movimento que não faz sentido. Depois disso, vender tudo e mudar para uma cidade onde não conhecíamos ninguém também era desafiador”, recorda-se.

Conexão com as palavras

Marcelo cursou jornalismo, trabalhou com edição de vídeos, formou-se em marketing até que decidiu seguir os passos da avó (tradutora de livros de psicanálise) e do pai (tradutor de softwares de engenharia). “Faço tradução para jogos de videogame, geralmente legendas, conteúdos de interface, dublagens”, explica o homem que converte textos do inglês para o português num mercado em franca expansão no país. Diariamente, portanto, Marcelo é confrontado com o universo dispersivo da tecnologia. O budismo, segundo ele, trouxe o equilíbrio. “Isso foi um conflito por um momento na minha prática. A monja Karma (Lekshe Tsomo, que fez palestra na cidade em junho) disse uma coisa bem legal: seria interessante mais investimentos em jogos que não sejam só de violência. O que tenho visto nesses anos todos é que tem surgido muito jogo com esse viés. E quando comecei a pensar sobre isso, também decidi usar meu conhecimento de forma interessante, me oferecendo como voluntário para traduzir textos budistas”, diz ele. “Ao invés de ficarmos nos culpando, podemos pensar no que fazer para usar o conhecimento de outra forma”, completa. “Acho que sempre vai haver público para um jogo de guerra, tiro, violência, mas dentro do mercado de jogos está claro que existe muito espaço para outros tipos, como os jogos que não têm objetivos claros e são meio contemplativos. Já surgiram jogos que fogem da ideia de que você ganha pontos com os tantos que mata. Terão esses jogos e muitos outros. ‘Minecraft’ é um deles, que permite que você crie o que quiser, como os blocos de montar com os quais a minha geração cresceu.”

Elo com a cidade

Juiz de Fora foi o quarto pouso. Nascido no Rio de Janeiro, de onde saiu na adolescência, Marcelo cresceu em Friburgo e Teresópolis até escolher Minas Gerais. “Estava querendo mudar de ares. Minha esposa e eu começamos a procurar cidade e investigar IDH, custo de vida e outros fatores. Tivemos, então, a oportunidade de conhecer Juiz de Fora e gostamos. Pesou o fato de ser distante, mas não ser tão distante do Rio de Janeiro”, comenta ele, que em 2013 deixou para trás um estresse sobretamanho. “Assim que nos mudamos para cá, comecei a reavaliar algumas questões de vida: o tanto que eu trabalhava, o que estava consumindo, como eu cuidava da minha saúde, e começou a surgir uma curiosidade por uma espiritualidade. Vi coisas no espiritismo, no budismo e fui fazer tai chi chuan no parque do Museu. Meu professor é budista e me apresentou os grupos na cidade. Visitei dois e acabei ficando no que ele participava. Foi onde me senti mais acolhido. Depois conheci o CEBB (Centro de Estudos Budistas Bodisatva) e estou lá desde então”, conta ele, referindo-se à instituição criada em 1986, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, por Padma Samten, um ex-professor universitário de física quântica ordenado lama em 1996 e que hoje viaja o país inteiro difundindo a filosofia e religião budistas. A sede juiz-forana começou sua história na casa de uma das praticantes, no Bairro Paineiras, depois passou para a empresa de outro membro e hoje ocupa uma sala comercial no Edifício Juiz de Fora, da Galeria Dr. João Beraldo, onde Marcelo é um dos facilitadores de meditação e estudos budistas. “A mente se distrai com pensamentos e barulhos, mas com o tempo conseguimos permanecer tranquilo sem embarcar nos pensamentos. Isso cria uma base do silêncio, que permite outras meditações, como a da compaixão.”

Contato com a calma

Dispersiva, a tecnologia também é aliada. E o budismo se amplia nas novas conexões. “A grande felicidade que temos hoje é termos mestres ordenados brasileiros, como a Monja Coen, o Lama Samten e muitos outros que entendem a nossa cultura e possuem a facilidade de falar para nós. E também temos meios de tecnologia para aproveitar isso”, aponta Marcelo, que começou seguindo uma linhagem do budismo tibetano que tem rituais como liturgias. Em menos de um ano depois, deu início à prática do silêncio. “Hoje procuro fazer, pelo menos, 15 minutos de meditação todos os dias”, diz ele, vegetariano há alguns anos. “O que me chamou atenção no budismo foi a ideia da responsabilidade de cada um. Entender isso é bem libertador, porque tira a gente de uma ideia de culpa que limita e nos leva para a noção de que nossas ações individuais têm consequências. E, também, o trabalho com as emoções, das mais aparentes como a raiva até as mais sutis, como a inveja. Conseguir observar essas emoções e gerar mudança é o que me mantém praticando o budismo”, afirma ele, dizendo nunca ter sido obrigado a seguir uma ou outra ideologia. Filho de pais separados, criado pelo pai desde os 4 anos, Marcelo ouvia sugestões, apenas. Repete a orientação com o filho adolescente. E sabe que tudo tem seu tempo, uma iluminação. “Pessoalmente não me vejo seguindo um caminho monástico, nem me dedicando somente ao budismo, mas tento olhar para como meu meio de vida pode ser melhor com o que aprendo.”

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