Nair e seu viver como samba-enredo
Dos ranchos aos blocos: o samba no pé e a resistência orgânica da mulher de 98 anos
Às 14h ela já era esperada. Passou uma, duas horas, e quando faltavam apenas 30 minutos para a saída do Bloco Recordar é Viver, dona Nair chegou ao Centro de Convivência do Idoso, onde já se encontravam quase todos os senhores e senhoras com seus abadás e adereços de cabeça. “É que não corro. Todos correm por mim”, justificou, sorrindo, Nair da Silva, já em seu vestido em tons de azul para demarcar-lhe o lugar de destaque na folia que desfila a alegria de acumular o tempo. Nair acumulou 98 anos, que este ano se transformam em 99. E o samba foi um companheiro. “Eu saía no rancho Não Venhas Assim, que podia sair mulher. Depois teve um grupo que era dançando. Também fui porta-estandarte. Já saí no Real Grandeza, quatro vezes. Na União das Cores, outras duas. E na Mocidade de São Mateus, mais duas vezes”, orgulha-se. “A primeira rainha de carnaval fui eu. A faixa e a coroa eram de papel. Ninguém me tomou. Ela rasgou e eu joguei fora. Perguntaram se eu queria ser outra vez. Disse que não. Majestade é uma vez só”, conta, num afiado senso de humor, a 292ª idosa à chegar no espaço gerido pela Amac. Por 15 anos seguidos foi a porta-bandeira do bloco onde há seis é um dos destaques. Qual a receita de tamanha vitalidade? “Viajo sozinha, faço tudo sozinha. Almoço no (Restaurante) Popular de segunda a sexta. Aos sábados, dou um jeito aqui. Domingo, minha sobrinha me dá almoço. Fico em casa só de noite. Terça e quinta faço dança de salão e só chego às 20h. De segunda a quinta vou ao Centro de Convivência, mas só pela manhã. Faço ginástica e boliche. Nas horas de folga, faço trabalhos manuais. Tem uma clientela que me compra pano de prato”, enumera. “Penso só no dia de hoje. Nem no de amanhã eu penso, porque não sei se vou chegar lá. O de ontem, também, não me interessa mais que o hoje”. Ela quer viver no compasso do relógio.
Bom saber
Filha de um pedreiro e de uma lavadeira, Nair foi criada com os dois irmãos – Jair e Odair – ambos já falecidos, a despeito de serem, 14 e 17 anos mais novos, respectivamente. O pai morreu novo, aos 67. A mãe, aos 92. O trabalho sempre foi o motor da família. Aos 14, Nair foi trabalhar como operária numa fábrica de estopa. Com a falência da empresa, empregou-se na fábrica de cobertores Cia. Fiação e Tecelagem São Vicente, onde permaneceu por mais de três décadas. “Eu me aposentei lá. Quando o Getúlio fez a lei trabalhista, já tinha anos de casa, mas não tinha carteira”, conta ela, há 51 anos aposentada. Não parou, contudo. “Tinha uma amiga que tomava conta de criança recém-nascida. Eu disse: ‘Quero fazer isso!'”, lembra a mulher que completou a quinta série e seguiu para o cuidado de 35 crianças, 11 deles da família do político e pecuarista José Procópio Teixeira Filho. “Quando nasceu o bisneto dele, a mulher dele falou no salão de cabeleireiros que não tinha quem cuidasse dele, e que a neta era muito novinha. Uma outra ex-patroa falou: ‘Chama a Nair! Ela cuidou do meu neto!’. Naquela época, eu trabalhava de noite na Santa Casa e durante o dia levantava para catar lavagem dos vizinhos para tratar dos porcos que a gente criava no quintal. Entrei pelos fundos e minha mãe falou que tinha uma mulher me procurando para me levar para o Rio de Janeiro.” Nair pensou por três dias e seguiu para cuidar, por dois meses, do recém-nascido. Em outra ocasião, a viagem incluiu avião. “Fui para os Estados Unidos. No voo de ida, quando não dava para saber se estava indo para lá ou para cá, o homem avisou que o avião estava voltando para o Rio. Eu tinha tomado dois Dramin e nem vi nada. A avó da criança, que ia comigo, passou mal e falou que não iria mais. Os passageiros que não moravam no Rio foram para o Hotel Glória. Naquele tempo, no Glória não entrava preto, mas fui mesmo assim. Ainda levantei no dia seguinte e fui na missa do bairro”, ri a mulher, que desembarcou num solo norte-americano que ainda ecoava a tensão do movimento dos direitos civis dos negros. “Fiquei sete meses, mesmo tendo permissão para ficar só seis”, conta ela, que uma única vez passou anos com a mesma criança. “O último neném que peguei, conheci com seis meses e deixei com 17 anos. Aí encerrou meu trabalho.” O cordão umbilical com quase todos os bebês, no entanto, nunca rompeu. Uma das nenéns, por exemplo, é quem cria os vestidos com que Nair vai para os desfiles do Recordar é Viver.
Bom combate
O quase século que Nair vivenciou fez-lhe testemunha de conquistas como o voto feminino, que viu aos 13. “Mais tarde, na primeira vez que eu fui votar, meu Deus, que fome que eu passei! Fiquei o dia inteiro na fila! Como era tudo na base do manual, o negócio demorava muito”, recorda-se a senhora, que no passar dos dias se fez combativa. “Quando era criança, fui fazer teatro no grupo. A peça era ‘A Branca de Neve’. Eu fazia o papel de espelho e a vendedora de maçãs. No grupo fiz tudo direitinho. Quando levaram a peça para o Central, não me quiseram. Chamaram outra menina, porque, de negro, só tinha eu na peça. Não esquentei a cabeça”, conta a mulher que, como atriz, fez figuração nos filmes “Menino Maluquinho” (1995) e “Zuzu Angel” (2006), além de ter vivido uma coadjuvante em “Quase nada” (2000). Depois, queria vestir de virgem. No meu tempo, o sonho de toda criança era esse. Uma diretora na igreja perguntou quem queria. Ela mandou eu procurar uma, depois outra, e mais outra. Uma patroa da mamãe fez um vestido branco lindo para mim, com um capote e uma pele de coelho. Na casa de outra patroa, pedi um buquê de Monsenhor. Fui toda linda para a igreja e fiquei esperando me chamarem. Perguntei à diretora, e ela disse que meu nome não estava lá. Não pude entrar com as outras. Uma passou e pediu meu buquê, eu dei, fui para o primeiro banco e desatei a chorar, vendo aquelas 200 virgens entrando. Meu pai, que nunca ia na igreja, naquele dia foi e, quando me viu chorando já queria brigar. Mas fomos embora”, lembra. No dia 31 daquele maio, o padre subiu na escada para os testes da coroação, caiu e quebrou o braço. “No dia 6 de junho, eu fui confessar e falei com ele que disse ‘Bem feito!’. Ele perguntou porquê, e eu respondi: ‘Ué, eu quis vestir de virgem e o senhor não deixou porque eu sou preta’. Ele falou que não tinha mandado nada. No outro ano, tinha até anjo preto. Não era ele, mas as diretoras”, conta ela, que mais tarde se vestiu de virgem na Catedral Metropolitana por dois anos seguidos.
Bom viver
Nair nasceu no alto da Rua Espírito Santo. Mais tarde mudou-se para o Alto dos Passos. “Minha casa era a última da Rua Dom Silvério. Tinha uma bica para a gente buscar água para lavar roupa. Para cima, era a fazenda da dona Mariana, onde hoje é o seminário. O Boqueirão era vale, um morro. A gente vinha aqui no Cachoeirinha (hoje Santa Luzia) catar lenha. Só tinha uma casa”, conta. Hoje mora numa casa pequena na Avenida Santa Luzia, que comprou com a família no tempo de Juscelino Kubitschek. Ao lado, mora a sobrinha, a filha que a vida lhe deu. “Nem de namorar eu fui. Arranjava casamento para todo mundo, mas eu ficava de fora”, ri a mulher que conheceu outra Juiz de Fora, outros costumes, outros lugares. Só não encontrou a solidão. Aos 82, foi diagnosticada com um câncer de estômago e precisou retirar o órgão. Depois de enfrentar uma saga indo de médico em médico, rezar uma Ave Maria para a Nossa Senhora Desatadora dos Nós, esperar 43 dias internada para operar, ser desacreditada, receber transfusão sanguínea, Nair recebeu alta em novembro. “Em março, o bloco ia sair na avenida homenageando o Ziraldo. Todo mundo me perguntava: ‘Nair, você vai sair?’ E eu respondias: ‘Vocês acham que eu perco carnaval na avenida?'”, lembra ela, que estabeleceu como imagem para sua posteridade uma fotografia na folia. Quer ser recordada vivendo. “Não quero chegar a idade nenhuma. Deus é quem resolve. Minha roupa para enterrar já está arrumadinha. Já escrevi tudo o que tem para fazer. E já disse para minha sobrinha que não quero ficar em capela. Quero ser velada em casa”, diz. Tem medo? “Não. Tenho que ir mesmo, não é?!”