Quem é o Chapolin que vende balas no sinal do Bom Pastor?

‘Não contavam com sua astúcia’: Hugo Lima conta da vida como garçom, da invisibilidade e dos olhares que encontra hoje


Por Mauro Morais

02/11/2019 às 07h00

Numa festa, não raro a mão vai à bandeja e o olho de quem é servido nem cruza com o de quem serve. Num restaurante, é comum o prato chegar à mesa sem o agradecimento como acompanhamento. Algumas profissões parecem invisíveis socialmente. Hugo da Silva Lima sabe como é isso. Nos dois espaços, vestiu-se de garçom. “Acho que isso me incomodava mesmo. Era uma coisa de alma, de não ser percebido”, reconhece, vestido de Chapolin Colorado, o herói atrapalhado interpretado por Roberto Gómez Bolaños, o mesmo ator mexicano que deu vida a Chaves. “Agora é uma quebra na casquinha do ovo, e eu estou começando assim, como um pintinho que começa a soltar as asinhas”, diz ele, que continua servindo, vendendo balas no semáforo, mas sem qualquer discrição.

“Tem gente que não gosta, tem gente que gosta demais. Tem gente que olha de lado, com críticas. Tem criança que vem superaberta e até beija. Todo e qualquer tipo de reação estou percebendo agora. Tem um pessoal que já amoleceu. Chego todo aberto, com um ‘Bom dia!’, e às vezes as pessoas nem olham, mas algumas já passaram a me receber de forma melhor. Agora já tem gente que me chama, e eu estou até ganhando uma fidelidade. No dia que faltei, já teve gente reparando. Os caras do ônibus, também”, conta ele, que no último Dia das Crianças vestiu-se com a fantasia e foi distribuir balas na UFJF. Bastou colocar o pé na Praça Cívica, e dezenas de pequeninos se reuniram à sua volta.

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Há duas semanas, também trajava a veste vermelha com anteninhas e foi para a Feira da Avenida Brasil. “Não fui para vender, mas para passear. Só para comer um pastel, tomar um caldo de cana e também comprei um iogurte e uma bananinha. Ainda aproveitei para almoçar na casa de uma amiga minha, que mora ali perto. O pessoal mexia, interagia normalmente”, descreve, sem incômodo, o homem que se cansou da invisibilidade.

Hugo se veste de alegria e irreverência: “Agora é uma quebra na casquinha do ovo, e eu estou começando assim, como um pintinho que começa a soltar as asinhas” (Foto: Fernando Priamo)

‘E agora, quem poderá me defender?’

Hugo trabalhava como garçom num restaurante, mas negociou com o patrão para ser demitido e, com a rescisão, comprar uma moto para atuar como motoboy. Com receio, decidiu não investir todo o dinheiro e teve outra ideia quando viu um homem vendendo balas no sinal fantasiado com os personagens da série “La casa de papel”, da Netflix. Nunca tinha visto aquilo em Juiz de Fora e resolveu arriscar. Seu investimento, então, se reduziu, passando a R$ 200, o valor da fantasia de Chapolin Colorado. “Pensei no Chapolin inspirado na página (do Facebook) Chapolin Sincero, que posta frases cheias de sarcasmo”, conta. Quando a compra feita na internet chegou em casa, Hugo ainda titubeou. “A ideia martelava na cabeça, mas eu pensava em outras coisas: distribuía currículos, entrava em site de empregos, mas não aparecia nada. Foi ficando só o Chapolin mesmo. Eu estava com medo de sair na rua vestido assim”, lembra o homem, que na segunda terça-feira de outubro estreou no novo ofício. Esperou o sinal do Bom Pastor, na Avenida Dr. José Procópio Teixeira sentido Alto dos Passos, fechar e passou de carro em carro oferecendo seus doces. Hugo vende barra de chocolate, chicletes, balas e chocolates, produtos cujo preço varia entre R$ 1 e R$ 2. “Não quero buscar muito lucro. Quero algo justo para mim e para quem compra”, diz.

No sinal do Bom Pastor, na Avenida Dr. José Procópio Teixeira sentido Alto dos Passos, Hugo vende barra de chocolate, chicletes, balas e chocolates. (Foto: Fernando Priamo)

‘Suspeitei desde o princípio’

A primeira casa em que viveu ficava no Bairro Nossa Senhora de Fátima, na Cidade Alta. Hoje mora sozinho no Jardim Marajoara. “Na verdade, não tão só, mas com dois gatos: a Crica, branquinha, e o Crec, preto”, observa. Hugo tem uma irmã três anos mais velha. Tinha acabado de entrar na adolescência quando os pais se separaram, e ele perdeu ainda mais o contato paterno. A mãe, cozinheira e auxiliar de serviços gerais, casou-se novamente, e ele ganhou um novo amigo. Aos 17, teve a carteira assinada pela primeira vez. A função: auxiliar de garçom. Não servia, mas limpava as mesas. Com o tempo, foi ganhando experiência. “Passei por bastante trampo. No primeiro que eu entrei foi para pagar o curso da PM. Assim fui passando de trabalho em trabalho, na maioria deles como garçom. Em um fui auxiliar de cozinha, na pia, lavando os utensílios. Também já trabalhei como porteiro e balconista”, enumera. Na portaria, conta, muita coisa mudou, já que com um dos moradores, um psicólogo, travou conversas e leu livros que o fizeram refletir sobre questões adormecidas em seu íntimo. “Sempre fui uma pessoa muito fechada, muito tímido. Tinha medo de reações. Era tanto, a ponto de perceber o olhar de qualquer pessoa e já abaixar a cabeça. Era muito fechadão e sofria bullying na escola por isso”, recorda-se, dizendo enfrentar traumas de um passado nem tão passado assim.

“Tenho algo a oferecer para a sociedade”, diz Hugo, o Chapolin juiz-forano. (Foto: Fernando Priamo)

‘Minhas anteninhas estão detectando’

“Fiquei muito tempo trabalhando para alguém e sem ser visto. Agora senti a necessidade de fazer algo para mim, algo que dependesse de mim. Ainda não sei lidar com essa nova situação. Sou novo no empreendedorismo. Pulei sem paraquedas”, ri o homem alto e forte, de voz grave e um sorriso constante impresso no rosto. “Depende de mim, agora. Eu trabalhando de 5h50 até 11h já consigo ganhar mais do que trabalhando oito horas por dia como garçom. Fora que, agora, trabalho de segunda a sexta”, pontua. Durante a semana, Hugo passa as tardes e noites lendo, assistindo vídeos no YouTube ou encontrando amigos. Nas noites de sexta e sábado, das 19h às 3h, atua como garçom em um bar no Aeroporto. O tempo hoje livre quer ocupar estudando. Hugo concluiu o ensino médio no Bairro Tupã e passou a tentar concursos públicos, primeiro para integrar a PM e, depois, a Marinha. Do segundo concurso, acabou desistindo por não ter como se manter no Rio de Janeiro para as etapas posteriores à prova. Também fez curso para agente penitenciário, mas faltou-lhe um ponto no exame. Pensou em fazer diferentes faculdades e hoje quer cursar psicologia. “Tenho algo a oferecer para a sociedade, mas a mensagem que tenho para entregar seria melhor com mais estudos. Preciso ampliar meu vocabulário para facilitar que essa ideia acesse as pessoas. Tenho informações que estão abstratas na minha cabeça e, para transmitir, ainda tenho dificuldades. Estudando vou ter contato com mais pessoas e vou poder aprender mais”, comenta Hugo, cujo núcleo familiar não possui membro graduado. “Quero ser o primeiro”, diz.

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