Quem julga vê a si mesmo


Por Daniela Arbex

25/08/2019 às 07h00

Em setembro, a presidente da Casa do Caminho completará 95 anos. Para comemorar a data, Isabel Salomão de Campos manifestou o desejo de reunir os meninos que passaram pelo Lar do Caminho, entidade que ela fundou na década de 80, retirando mais de 500 crianças e adolescentes das ruas. Todos em situação de vulnerabilidade social. Além de oferecer a cada um atendimento integral, escola de qualidade e oportunidade, ela conseguiu promover o fortalecimento dos vínculos familiares, um tecido social antes esgarçado em função das limitações impostas pela falta de acesso aos direitos básicos. Atualmente, o trabalho do Lar do Caminho é focado nos serviços de convivência comunitária e no atendimento à primeira infância.

Muitos desses garotos que cresceram no Lar do Caminho conquistaram uma profissão e hoje têm a sua própria família. E nessa mobilização para a realização desse reencontro tem sido emocionante testemunhar tudo que eles se tornaram. Mais bonito ainda é ver a alegria de cada um diante da expectativa desse almoço. Os convidados falam sobre o passado e a gratidão que sentem pelo que receberam das mãos de dona Isabel. Relembram os natais, as festas de aniversário, as brincadeiras na quadra de esportes da instituição, a experiência de uma infância feliz.

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Entre tantas histórias, havia uma mais difícil. Soube que um dos garotos tinha sido detido por envolvimento com CD pirata há alguns anos. Contei para dona Isabel sobre isso e perguntei se deveríamos convidá-lo para o encontro.

– Claro que sim. Nós não podemos descartar ninguém, ela respondeu.

Fiquei muito envergonhada com o equívoco do meu julgamento. Na hora, pensei: que tipo de pessoa eu sou ao me achar melhor do que outras? Enviei o convite para ele logo em seguida. A resposta veio em poucos minutos.

– Nossa, que alegria! Sou muito grato a dona Isabel por tudo que recebi nesta vida. Recomeçar nunca é tarde.

Li a resposta para dona Isabel. Ela, então, pediu que enviasse um recado a ele.

– Diga a ele que sempre vivi para entender e ajudar.

– Isso alegra o meu coração, respondeu o rapaz, completando em seguida:

– Semana que vem, me formo na Faculdade de Engenharia, contou. Gostaria de levar meu convite para dona Isabel, pois eu nunca esqueço da minha raiz e de onde eu vim, afirmou enviando pelo celular uma foto que guardava em seus arquivos. Na imagem, ele aparecia com 5 anos de idade ao lado da fundadora do Lar. Na sequência, ele enviou outra foto. Desta vez, recente, tirada na companhia de seus colegas de universidade.

Fiquei realmente impressionada com a minha pequenez. Aquela conversa me fez refletir muito sobre a vida. Olhei para dona Isabel e pensei em tudo que ela fez por todas as pessoas: brancos, negros, ricos, pobres, ateus, católicos, espíritas, evangélicos, protestantes, homens, mulheres, crianças, idosos. Detentos, indivíduos em situação de rua… Nunca ouvi dela qualquer tipo de julgamento sobre quem quer que fosse.

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No mesmo dia, li uma entrevista concedida pelo pai de uma das vítimas do sequestro do ônibus no Rio. Ele havia acabado de consolar a mãe do sequestrador morto por um sniper. Sobre o gesto, o homem disse ao repórter:

– Como ser humano, fui ajudar, porque, naquele momento, a dor é dos dois lados. Eu não tenho poder de julgar.

Aquele foi um dia para eu não esquecer. Ao julgarmos o outro, revelamos muito sobre nós mesmos. E quando o nosso olhar está contaminado por preconceitos, a gente até consegue ver, mas tem uma dificuldade enorme de enxergar.

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