Herança digital: não somos mais os únicos donos do que pensamos


Por Daniela Arbex

23/09/2018 às 08h24

Nunca tinha ouvido falar no termo “herança digital” até conhecer, no Paraná, o famoso advogado João Aguirre, especialista em direito civil, principal ramo do direito privado. Participávamos da Semana Jurídica da Universidade Unicesumar, em Maringá, quando tive a chance de ouvir a palestra dele. Aguirre falou de um tema cujos fundamentos ultrapassam o simples regramento a respeito da destinação do patrimônio de uma pessoa. A discussão era sobre a tutela dos direitos existenciais. Direitos existenciais? Para uma leiga como eu, aquilo soava bem estranho.

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Na prática, trata-se da discussão – polêmica, diga-se de passagem -, da transmissão aos herdeiros de todo o conteúdo de contas ou arquivos digitais de um defunto. Isso mesmo! Dois projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional querem alterar a redação do Código Civil para adequar o planejamento sucessório à era das redes sociais. A redação atual do artigo 1.788 diz que “morrendo, a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá em relação aos bens que não forem compreendidos em testamento ou se o mesmo caducar ou for considerado nulo”. Se a proposta dos congressistas for aprovada, será acrescentado um parágrafo único ao tal artigo: “serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais do autor da herança”. Todos? Sim, todos.

Significa que seu filho, neto, bisneto e as gerações subsequentes poderão ter acesso a todas as conversas que você mantiver no Facebook, WhatsApp, Instagran, e-mail ou onde mais houver teclado durante sua vida. Significa, ainda, que o já violado direito à privacidade poderá ser ainda mais afetado e que nada é tão ruim que não possa piorar. Significa, ainda, que você não será mais proprietário nem do que pensa, nem do que sente. Que tudo, tudo mesmo, poderá ser compartilhado com seus amores e até com alguns espíritos de porco, já que toda família tem indivíduos desse naipe. Resumindo: trata-se da discussão de quem tem legitimidade para acessar contas e perfis de usuários falecidos.

Para apimentar a discussão, Aguirre mostrou que já não somos, como pensamos, proprietários únicos de conteúdos e informações que armazenamos nos aplicativos que usamos. Como exemplo, ele citou o Facebook. Por acaso, você já leu, de verdade, os termos de aceite do uso dessa ferramenta digital? Não, né?

Diz o termo que o usuário concede aos donos do Facebook uma licença global não exclusiva, livre de royalties para uso de qualquer conteúdo IP publicado por você. Significa que mesmo os conteúdos que o usuário decidir remover poderão permanecer em cópias de backup por um período razoável. Neste caso, razoável pode significar 200 anos ou o tempo que aquele conteúdo se mantiver interessante. E como fica a privacidade? Não fica. Nesse contexto, o direito à proteção e à vida íntima não se limita mais ao direito de não intromissão alheia na esfera particular das nossas vidas. Agora, ele transcende a esfera doméstica para alcançar o direito ao controle de nossos dados pessoais.

Dito isso, fica um conselho: não escreva nada que possa te envergonhar no presente, no futuro ou depois da morte. Se não conseguir, faça como João Aguirre em seu codicilo (escrito particular sobre a última vontade de uma pessoa): “pelo presente instrumento de codicilo, feito de meu próprio punho, e assinado no meu perfeito juízo, exaro minha última vontade para determinar que eu seja enterrado juntamente com meu aparelho de telefone celular.”

 

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