Quem se importa com o futuro?


Por Daniela Arbex

14/10/2018 às 07h05

A Caixa de Pandora aberta pelo atual momento político do Brasil espalhou entre nós, brasileiros, todos os males do mundo. Da mesma forma que o ocorrido na mitologia grega, a libertação do mal junto à humanidade nos coloca frente com o que pensamos sobre a vida e sobre o outro. No ano em que o politicamente correto foi brutalmente enterrado, não é possível olhar para o que somos de verdade sem uma boa dose de horror. Somos aqueles que desejamos fazer justiça com as próprias mãos, de preferência empoderados por uma arma nas mãos, única forma de eliminar de vez os menos humanos que nós. Somos aqueles que sonham com a implantação da pena de morte no país, porque só matando é que a gente ensina de uma vez por todas que não se deve matar. Somos também os que assistiremos ao encarceramento dos “dimenor”, os projetos de bandidos que moram em corpos de crianças e adolescentes.

Somos os cidadãos de bem que não respeitam direitos trabalhistas, porque, afinal, direitos são para alguns humanos. Somos aqueles que morrem de medo de ver seu confortável mundinho ser ameaçado por gente preta, suja e pobre, porque esses não devem frequentar os mesmos espaços que os bem nascidos. Somos também aqueles que defendem as mulheres, mas se incomodam muito de dividirem o mercado de trabalho com elas. Somos ainda os maridos e pais que fora de casa se comportam como predadores, os machos que terão seus desejos satisfeitos a qualquer custo, mesmo que não sejam desejados por suas vítimas.

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Somos os religiosos que falam de caridade, mas alimentam as diferenças, já que só terá lugar no céu os que podem pagar por um. Somos os que não querem a paz, pois o tempo do diálogo – coisa mais cafona – já passou. Somos ainda os que aceitam a tortura para os que merecem ser torturados. O povo que não se importa com nenhum projeto de país, já que coletividade é coisa de regimes políticos esfacelados. Quem quer ser Venezuela, quando pode ser Alemanha? Chegados são os tempos em que veremos a tão sonhada limpeza social. Sem gente feia, burra, incapaz, por favor. Na sociedade da meritocracia só os capazes terão um lugar ao sol. Os outros nem deviam ter nascido. Que beleza ver a violência virar uma política de Estado, onde qualquer denúncia será inútil.

Na perspectiva evolucionista, civilização é o estágio mais avançado de uma sociedade. Incrível pensar que nunca estivemos tão longe do título de civilizados. Em que século estamos mesmo? Por um momento, pensei que estávamos no século XXI. O problema é que discutir presente é coisa do passado. Afinal, quem se importa com o futuro?

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