O enterro da razão


Por Daniela Arbex

09/02/2019 às 07h01- Atualizada 09/02/2019 às 17h30

A nota técnica nº11/2019 do Ministério da Saúde sela o rompimento do Governo federal com a reforma psiquiátrica brasileira. O documento sobre a “Nova Saúde Mental” lança uma pá de cal nos mais de 40 anos de esforços dos trabalhadores de saúde mental para garantir um atendimento humanizado a pessoas acometidas por transtornos e que, durante décadas e décadas, foram segregadas em locais destinados não ao tratamento, mas à higienização social. O caminho para o retrocesso já havia sido aberto por Michel Temer, cujo governo aprovou o aumento de repasses públicos para leitos em hospitais psiquiátricos (questão tratada apenas como atualização das diárias), visando a manutenção da oferta, sua ampliação e a expansão de comunidades terapêuticas que, muitas vezes, recorrem à religião para tratar dependentes químicos. Agora, no entanto, o rompimento é escancarado. Não só abre as portas para a retomada da lógica manicomial, como aceita a internação de crianças e adolescentes em enfermarias psiquiátricas, condenando a infância e juventude a uma vida sem futuro.

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“Importante reforçar que o Ministério da Saúde não mais incentiva ou estimula o fechamento de leitos especializados, mas a sua qualificação, elevando os padrões assistenciais. (…) A diretriz adotada por essa Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas é no sentido de qualificar os hospitais psiquiátricos remanescentes para que recebam novos pacientes e não que fechem as portas às demandas da população, piorando ainda mais a desassistência que vinha aumentando nessa área nos últimos anos”, diz parte do texto publicado pelo governo. Segundo o Ministério da Saúde, hoje o Brasil conta com 0,1 leito por mil habitantes, enquanto o preconizado pelo próprio órgão ministerial é 0,45 por mil habitantes.

Na prática, o Ministério usa os nós que a rede substitutiva não conseguiu desatar para justificar a retomada do modelo anterior, ou seja, para caminhar na direção do profundo retrocesso, oferecendo vários tipos de custeio para hospitais que poderão ter de 160 leitos a mais de 400 leitos, dando aval para retomada dos grandes depósitos de gente. Que fique claro: não existem leitos humanizados em manicômios, vide toda a história revelada no Holocausto brasileiro, quando milhares de pessoas morreram de fome, frio e abandono nas barbas do Estado, com a conivência nossa de cada dia. Se o poder público não consegue ser eficaz para fiscalizar sequer estruturas a céu aberto, como a barragem de Brumadinho, Mariana, Miraí, como fiscalizar o que acontece dentro de quatro paredes, em meio às muralhas erguidas pelos hospitais que só fizeram trancafiar os privados de razão?

Basta relembrar o esforço do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares para verificar as condições de funcionamento dos hospícios brasileiros e a patacoada que os donos de hospitais faziam para “maquiar” a realidade em épocas de visitas “surpresas”. Na ocasião das avaliações, os doidos eram vestidos, a despensa renovada, a pintura repaginada. No resto dos dias tudo era exatamente igual: privação, abuso de poder e o máximo que o mínimo poderia oferecer.

Basta acessar as fichas dos pacientes para perceber que, ao invés de um local de tratamento temporário, os hospitais se tornaram locais de moradia, cronificando pessoas por décadas e décadas. Gente transformada em trapo humano, sem visitas e afeto. Para entender os efeitos da desumanização, basta conhecer a história de Cabo, o paciente que passou 20 dos 34 anos internados no antigo Colônia, em Barbacena, sendo considerado uma pessoa muda. Um dia, no entanto, ele soltou a voz, assustando o funcionário que olhava para o paciente veterano como se tivesse visto um fantasma. “Por que você não disse que falava?”, questionou o homem, quase ofendido. A resposta foi cortante: “Uai, nunca ninguém perguntou.”

O que pensam os antigos usuários dos hospitais sobre o financiamento do governo para compra de aparelhos de eletrochoque e a retomada da eletroconvulsoterapia? Indicada para deprimidos graves, a técnica, porém, foi amplamente utilizada não por finalidade terapêutica, mas como castigo e contenção do grupo. Volto a repetir o que já disse em colunas anteriores. Não existe manicômio bonzinho. A quem interessa retomar modelos claramente falidos? A quem interessa fazer silêncio sobre a aberração que é a nova diretriz para a saúde mental no Brasil? A quem interessa desconsiderar que o tratamento em liberdade é não só mais eficiente, como mais digno?

Será que vamos continuar surdos ao sofrimento alheio, como fizeram com o Cabo, o paciente do Colônia, no passado recente? Eu não apenas ouvi os esquecidos. Eu os acompanhei dentro e fora dos hospitais por mais de uma década. E as pessoas que encontrei trancafiadas dentro de si mesmas nos manicômios reencontraram sua humanidade quando se viram livres das amarras causadas não pela doença, mas pela estrutura que se propunha a tratá-la. Na condição de usuários, os antigos pacientes ganharam o direito de votar, de ir e vir, de decidir a hora que as luzes seriam acesas ou apagadas nas residências terapêuticas onde passaram a viver. Reaprenderam a olhar para si mesmas, retomando o desejo de continuarem a existir.

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Agora, no entanto, os “loucos” poderão voltar ao confinamento. Já os “sãos” continuarão livres para promover o enterro da razão.

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