Embora constasse nos convites


Por Júlia Pessôa

31/05/2020 às 07h00

Pensei mais em você na semana em que se passou. Não que haja como me afastar completamente, nossas vidas – embora não nós – são indissociáveis. Ainda que hoje nos vejamos tão pouco. Estou reaprendendo a medir o tempo desde a última vez que pude sentir o corpo em contato com você. Há quantas manhãs não sinto o rosto ternamente abraçado pelo seu calor tão falso quanto reconfortante? Já faz quantas noites que as noites estão mais geladas porque meus pés invariavelmente de meia não pisam mais o seu chão? Nos últimos dias vi mais da sua cara, falaram mais de você. Era a proximidade do seu dia, lembrei-me depois. E pensei que talvez houvesse uma grande festa, em que abraçaria pessoas que eu amo, veria outras tantas inesperadamente, riria, comeria e beberia em algum canto, ao ar livre, sob pretexto de celebrar você, que seria mentira – ou esquecimento -, embora constasse escrito nos convites.

Seria capaz de imitar Matilde e tirar a poeira da bicicleta caso isso fosse capaz de fazer você dançar. E isso diz mais sobre meu amor do que sobre a capacidade torácica, um tanto comprometida por uma rinite que já já ameaça virar sinusite, visto que chegou a época. Senti falta de me indignar em pequenas (ou grandes) aglomerações maldizendo a presidência, o assassinato movido a colorimetria de pele, o frio, as violências , as injustiças, um filme ruim, uma banda ainda pior, a falta de tempo e tudo, e todo mundo que leva a doença. Mas justamente por causa dela, engasgo no meu solitário praguejar, soterrada por cobertas que nem de longe se assemelham ao calor de desbravar os dias com você.

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Como meu péssimo hábito de me perder no tempo tem piorado bastante, passei a anotar cada dia que sinto um mínimo sinal de sua falta. É para manter intacta minha linha de crédito, evitando me manter devedora quando finalmente puder passar a régua nessa salgada conta de nostalgia. Sei que falharei, e logo estarei vociferando, ainda que em murmúrio, contra o caos de seu Calçadão,  a soberba de sua classe média que se julga elite ou o trânsito impossível da Região Central e tantas outras coisas mais. E eu não sei se é a pequenez de minhas janelas, se são as lentes coloridas de olhos em isolamento, se de fato é amor ou a força (fortíssima) do hábito. Mas da aqui de onde te vejo, pela tela que segura a gata em casa ou pelas que digitalizam suas cores, só sinto saudades. 170 anos, Juiz de Fora. Parece que foi ontem. Quando vai ser nosso amanhã?

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