Um dos caras


Por Júlia Pessôa

30/03/2019 às 17h00

Eu já fui muito a garota que andava com homens e se orgulhava disso. Não porque eu não tivesse amigas mulheres, ou que não gostasse de estar cercada por elas. Eu não percebia na época, mas hoje, vendo o passado sob perspectiva (o que sempre faz a gente exergar melhor), percebo que era porque, de certa forma, estar entre homens me permitia ter uma espécie de rebarba das regalias que se tem sendo um deles em um mundo tão machista e que diariamente nos cala nos ambientes em que circulamos. Ouvi, dos garotos que eram muito proximos, mais de uma vez, como eu era um ótimo “amigo”. Assim, no masculino. E achava bom. Era como ser um deles e ser reconhecida por isso. Ser ouvida, respeitada e acolhida porque, afinal de contas, eu era “um dos caras”.

Ainda bem que o tempo passa e que a gente tem sempre, não importa em que altura da vida, a chance de aprender.

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Passei fevereiro e março, junto com minha amiga e também repórter Sandra Zanella, me dedicando ao caderno “Mulheres de luta”, projeto especial do jornal em menção ao Dia Internacional da Mulher, o 8 de março. Foi um trabalho muito afinado, entre nós e com as editoras Marise Baesso e Lena Sperandio. Mulheres pensando em um caderno que representasse mulheres, que levantasse por mulheres, feito por mulheres. (Não posso deixar de citar o trabalho esmerado da equipe de fotógrafos da Tribuna, todos homens, que deu cara às nossas palavras -e que linda cara! -, mas hoje o papo não é sobre eles.)

E durante todo este processo, de dezenas de entrevistas, de muitas horas de conversa, de imersão em histórias de vidas e visões de mundo de mulheres incríveis, eu ficava consumida por uma espécie de angústia: como fazer com que a leitura deste caderno seja capaz de incitar a admiração, o encantamento e uma força imensurável que senti ao ouvir o relato de cada uma das entrevistadas? Eu não sei se existe regra, técnica ou procedimento no jornalismo que me dê, alguma segurança de que isto aconteça. Mas enquanto eu viver de tornar públicas as palavras dos outros – e as minhas, como aqui – eu seguirei tentando.

Eu vivo cercada de mulheres. Na família, no trabalho, nos meus círculos de amizade, na maioria dos espaços em que eu, mulher também, circulo. E a gente divide tanto da vida, do copo meio cheio, meio vazio, seco de tudo ou transbordando, que é só assim que eu acho possível seguir vivendo numa realidade em que somos desacreditadas, violadas, desmerecidas, silenciadas, agredidas e mortas. Juntas. Isso não quer dizer que estamos de mãos dadas fazendo ciranda e nos amamos umas às outras necessariamente. Mas tem uma força que emana da união de mulheres que eu acredito ser muito contagiosa e que aniquila a falácia histórica em que caímos por tantos anos, de que somos rivais pedindo a cabeça uma das outras.

Por causa de histórias como as que ouvi e me esforcei para relatar no “Mulheres de luta”, hoje eu tenho certeza de que não preciso ser “um dos caras” para ser ouvida, respeitada e acolhida, e espero muito que chegue o dia em que garota alguma pense como a Júlia do passado. Outra fé inabalável que tenho hoje é a de que, ao contrário do que os meninos diziam, eu sou um péssimo amigo. Mas sou – ou me esforço muito para ser – uma excelente amiga.

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