“Muito dinheiro no bolso, saúde…”


Por Júlia Pessôa

28/12/2019 às 07h00- Atualizada 02/01/2020 às 12h43

Tenho andado com saudade daqueles clichês vazios de Ano Novo que a gente dizia por dizer, porque era a praxe, o código da data, é o que se diz mesmo. Vinham até nas musiquinnhas: “Muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”. Mas eles eram plausíveis – obviamente estou falando de gente que já tem algum privilégio, porque pra muita gente, mesmo em tempos melhores, estes desejos eram intangíveis. Claro que a gente não vai ser estraga-prazeres e miar a festa, porque 2019 é prova de que precisamos dela. Festejar. Como expurgo, como catarse, como maneira de estar junto de quem a gente ama e saber que passou. Pelo menos metaforicamente. Porque sem querer soar cética demais, mas já soando, quando 1 de janeiro chegar, continuaremos sem perspectiva de “muito dinheiro no bolso” – e olha que estou falando, se comparada ao resto da população brasileira, de um crème de la crème de privilégios. “Saúde pra dar e vender”, então, nem se fala. Com essa quantidade de agrotóxico, óleo nos mares e ataques ao SUS, os prognósticos não são dos melhores. E se saúde fosse, de fato, vendável, há gente tão na miséria que venderia.

Agora, lançamos “Feliz Ano Novo” aqui e acolá, mezzo roboticamente, mezzo se agarrando à máxima de que “pior não pode ficar”. A gente se inebria dessa atmosfera de abraços, encontros e excessos de fim de ano e chega a acreditar que não tem mesmo como as coisas ficarem piores neste país. Mas algo me diz que a gente nem devia falar isso em voz alta, porque sempre pode. Tem sempre uns metros (ou quilômetros) mais abaixo no fundo do poço. Mas eu não quero fazer uma festa do lamento aqui nestas minhas linhas semanais, muito menos durante a minha virada de ano.
Um dos ditos que vem viralizando desde as eleições de 2018 é o de Hemingway (ou atribuído a ele) é um diálogo:

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– Quem estará nas trincheiras ao teu lado?
– E isso importa?
– Mais do que a própria guerra.

Talvez seja o clichê substituto adequado para os desejos agora impalpáveis de dinheiro e saúde, como se não vivêssemos em um país em que não querem que tenhamos nem um, nem outro. Na minha trincheira tem muita gente abatida, cabisbaixa, machucada, amargurada. Mas nem por isso menos acolhedora, cheia de afeto, com cabeça erguida e força pra seguir em frente “Apesar de você”, cantarolando os versos do Chico. Gente que não perdeu a capacidade de amar e nem de rir, rir até a cara doer, das mazelas, de bobeiras pueris, de tudo e de nada. Eu não sei como vai estar a festa no lado em que as pessoas querem regular o corpo alheio, a sexualidade alheia, os direitos alheios e impedir que todo mundo tenha a chance de acesso às mesmas coisas. Como será o Réveillon de quem acha que segurança se tem é no gatilho? Honestamente, eu não quero nem descobrir. Na minha trincheira, a gente entra o ano com música, abraços, beijos e amado até os dentes, todo mundo pode ser do jeito que quiser- menos, claro, defensor de vocês-sabem-quem e vocês-sabem- o- quê (s). Afinal, temos empatia, mas não somos trouxas, e temos também cansaço de sobra. Aqui só tem lugar pro amor. 2020 não vai ser fácil, como 2019 não foi. Mas pode vir, que nós também não somos.

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