Vale tudo


Por Júlia Pessôa

26/01/2020 às 07h00

Era 1988, o Brasil mal engatinhava nos primeiros anos de abertura política pós-ditadura militar, e “Vale tudo” entrava no ar, vindo a se tornar uma das novelas mais emblemáticas da teledramaturgia nacional. Nestes últimos dias, vivemos com o espectro de Regina Duarte, protagonista da trama que virou hit, rondando a Secretaria de Cultura, quase já se sentando à cadeira a convite do presidente que, nas palavras da atriz em entrevista ao “Estado de S. Paulo”, “é um homem dos anos 1950, como meu pai, e que faz brincadeiras homofóbicas, mas é da boca pra fora.” Imagine só no que essa dupla vai dar.

“Vale tudo” foi tão emblemática que mesmo eu, que tinha só três anos quando a novela estava no ar, tenho as referências que a obra deixou: o mistério de “Quem matou Odete Roitman?”, a vilã; a jovem alcoólatra e bon vivant Heleninha Roitman; o personagem de Reginaldo Faria , um vilão corrupto, fugindo impunemente do Brasil ao fim da novela e dando uma banana para o país; e várias outras cenas antológicas. Neste imbróglio de Regina Duarte na política, fiquei curiosa para saber mais sobre a novela, e a sinopse diz que a trama “denunciava a inversão de valores no Brasil do final dos anos 1980”. Um dos fios condutores da trama era o conflito “honestidade versus desonestidade”, personificado no embate entre a personagem de Regina, exemplo de retidão moral, e a de Glória Pires, filha ficcional da namoradinha do Brasil, que não tinha qualquer escrúpulo para alimentar suas ambições de riqueza e, óbvio, odiava pobre. Eu poderia falar sobre o piadaprontismo e a provável inversão destes papéis, mas farei o meme da Glória Pires em um Oscar passado: não vou opinar.

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Corta de novo para 2020 e no Brasil não-ficcional (infelizmente), de fato, vale tudo. Vale a possível secretária de Cultura, cujo namoro com nosso país se mostra cada dia mais abusivo, dever R$ 319 mil na tão atacada Lei Rouanet. Não tinha acabado a mamata? Vale uma das capitais mais importantes do país estar em uma crise aguda em que as pessoas não podem beber água, já que ela passa bem longe de ser insípida, inodora e incolor como a escola ensina e tem, ao contrário, fedor e cor do que ela deveria levar para o esgoto – e talvez também o gosto, nunca comi para saber. Também está valendo chefe de estado dizer que “cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós” como se fosse tolerável em qualquer nível. Custei a acreditar mas é verdade, vale até órgão de pesquisa querer dizer que viemos do barro – ou no caso específico das mulheres, da costela de um desinfeliz. Se não fosse a ironia de estarmos em tempos em que abstinência sexual é política pública, eu diria que o país está – perdoe o palavreado – currado.

Eu sei que é feio dar spoiler, mas como a história é cíclica e realmente “Vale tudo” foi um sucesso, prevejo um tristíssimo “Vale a pena ver de novo”, com vários vilões deste infortunado Brasil atual não só fugindo completamente impunes quando o caldo derramar (porque ele vai), mas lascando uma tremenda banana para nós. Resta saber se existe aeronave grande o suficiente e se o próprio ar sustenta o peso de tanta vilania.

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