Não tem “pray” que nos salve


Por Júlia Pessôa

25/08/2019 às 07h00

O barulho eletrônico me tira de sei lá qual fase do sono eu estava quando a rotina me diz que preciso deixar os edredons (sim, no plural). Às vezes, a gata vem antes do apito. Às vezes, logo depois, já me rendendo uns minutinhos de atraso e afago antes de o dia se desenrolar – ou me atropelar. Faço um misto-quente ou uma torrada com ovos que como em pé, pois nunca tenho paciência de esperar o café ficar pronto para degustá-los juntos. O café vai puro, sozinho. Mas gosto, aprecio cada momentinho de paz das gotas da caneca muito cheia, como o dia que se anuncia. No caminho para a redação, checo e-mails pessoais, vejo se tem algo importante – quase nunca tem -, e respondo quem me mandou mensagem depois que eu já dormia. Rio de alguma bobagem em alguma rede social, dou “bom dia” a minha mãe, e talvez se encerre por aí , em uma hora, uma hora e pouco, a duração de tempo em que eu consigo esquecer da realidade e fingir que a vida segue como se tudo estivesse normal.

Ainda que, pela minha saúde mental e emocional que já teve lá seus golpes, eu tente me preservar de consumir conteúdo sobre o apocalipse que vivemos no país, meus esforços são sempre varada n’água. Vivo de informações: de apurá-las, de redigi-las, de buscá-las, de questioná-las, de divulgá-las. Como jornalista e também como professora de futuros comunicadores. Mesmo que eu me esquive com certa destreza, os (infelizes) fatos sempre encontram seu caminho até mim. E em função disso eu ando sorumbática, exausta, sem saber como agir enquanto o país pega fogo – e eu queria muito estar falando isso metaforicamente.

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Mas pouco importa os efeitos da distopia em que vivemos sobre mim. Dane-se o quanto eu ache surreal aplaudir uma morte, qualquer morte, ainda que seja a do sequestrador de um ônibus. Tampouco interessa como me desespera saber que a Amazônia está em chamas autorizadamente, em uma triste crônica da morte anunciada, encoberta por – finalmente poderei usar o termo que abomino devidamente – uma cortina de fumaça de acordos de desmatamento que beneficiam grandes empresas. (O agro é pop). Tampouco é preciso dizer o quanto lamento, como professora e estudante, o desmonte das universidades públicas como estratégia de manutenção de poder e de capitalização. Muito menos o que penso sobre a avalanche de asneiras que nos enfiam goela abaixo como pronunciamentos.

“A vida vai seguir, ninguém vai reparar”. Falo de um lugar de muitos privilégios e sei que não tenho direito de espernear pelas perdas que viemos sofrendo – enquanto quem mais as sofre não se pode dar a este luxo, pois tem que garantir que vai sobreviver até o fim do dia. Gente que perde, ao passo escrevo essas linhas e que você as lê, a vida, o emprego, os estudos, a moradia, os direitos, a dignidade, a comida na mesa. Estamos perdendo, todos e todas, a Amazônia, anestesiados – ou intoxicados de fumaça, fuligem e fake news carregadas de mau-caratismo. O livre acesso à cultura. E eu diria a liberdade de imprensa, até alguém dizer nos comentários que “essa lésbica comunista petista burra” (como costumo ser chamada, não que considere algum deles, nem “burra”, ofensa, dependendo de onde vem) “tem que ser mandada embora” porque “a matéria” (trata-se de uma coluna de opinião) “é tendenciosa”.

Eu ainda tenho muito a perder com o que está acontecendo, como qualquer pessoa que vive no Brasil. Mas há milhares, senão milhões que já perderam- do tempo verbal irreversível. Mas seguimos como se não vivêssemos o apocalipse. “Pray for Amazônia”? Não tem reza ou Deus em qualquer religião do mundo que seja capaz de nos salvar do poço de areia movediça e cocô (dia sim, dia não) em que estamos sendo jogados e ficamos cada vez mais atolados. A única certeza é a de que precisamos vencer a apatia e a tristeza.  Mas infelizmente, não me perguntem como. Porque antes que eu consiga pensar, o barulho eletrônico me tira de sei lá qual fase do sono…

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