Sala de professoras


Por Júlia Pessôa

23/08/2020 às 07h00- Atualizada 24/08/2020 às 16h28

Venho de uma longa linhagem de professoras, mulheres que dedicam longos períodos dos seus dias e muitos anos das suas vidas ao ofício de ensinar. Bisavós e avós que pegaram em pequenas mãos de crianças para que escrevessem seus nomes pela primeira vez, tias encantadas tanto pela linguagem dos números quanto pelo somatório de palavras e normas que compõem um idioma estrangeiro, primas de graus variados e que lecionam ou lecionaram conhecimentos igualmente variados. E claro, minha mãe.

Vem da minha mãe meu encantamento pela docência, sem sombra de dúvida e igualmente sem romantização: o amor pelo que se faz não aplaca a sobrecarga, a desvalorização e os inúmeros desafios de ser professora. Também isso aprendi com ela. Desde pequena, lembro-me de querer brincar nas matrizes de mimeógrafo e de fingir datilografar “provas” à maquina de escrever, numa nítida imitação de Dona Silvia, que muito exercitou o bíceps rodando a alavanca para obter cópias arroxeadas de provas mimeografadas e hoje se vê às voltas, como eu, com as tecnologias de ensino à distância. Que alfabetizou adultos no extinto Mobral e ensinou a incontáveis gerações sobre os mares de morros do Planalto Atlântico e tantos conflitos políticos espalhados pelo mundo em suas aulas de Geografia.

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Ao longo da vida, meu círculo de amizades foi sendo preenchido por professoras e professores: gosto dessa gente cujo trabalho é ensinar. Gosto tanto que me tornei, também, docente, começando a ensinar inglês ainda adolescente e há algum tempo lecionando – hoje por telas – no ensino superior.

Peço perdão pela extensa contação de caso, mas precisava deixar inquestionável a altura do pedestal em que coloco a sala de professores (e professoras, sobretudo). Minhas experiências pessoais e memórias afetivas não permitiriam que sua porta de entrada estivesse em outro patamar – e sinto muito que nem todo mundo tenha essa mesma construção.

Dito tudo isso, imagine o bug em meu cérebro ao ler que uma dita professora de educação básica, de crianças pequenas, falou que uma criança que foi estuprada, violada das piores formas possíveis, tinha uma “vida sexual”? Que devia ser “bem paga” por seu estuprador? Imagine a “tia da escola” silenciar esta vítima, tentando argumentar sob o questionamento de que “crianças se defendem chorando pra mãe, esta menina nunca chorou por quê?” (sic).

Eu desejo às duas, a menina e a ex-professora, devidamente demitida do ofício que jamais foi qualificada para exercer, o anonimato. À menina, para que tenha de volta sua infância roubada e devastada publicamente –  por isso mesmo, recuso-me a falar mais ou mais detalhadamente sobre este caso. À mulher, para que sem o eco estrondoso das salas de aula, o silenciamento de sua voz seja tão brutal que se confunda com sua própria inexistência.

 

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