Montanha russa


Por Júlia Pessôa

22/07/2018 às 07h00

Estamos cansadas. Exaustas, exauridas, derreadas, consumidas, fatigadas, combalidas. Todos os dias, eu disse TODOS os dias, eu fico sabendo de alguma mulher do meu convívio ou que circula em espaços em comum comigo que sofreu abuso sexual, viveu um relacionamento abusivo, apanhou, foi assediada, enfim, sofreu algum tipo de violação pelo mero fato de sua existência sendo mulher. Todos os dias. É exaustivo. E isso só no meu convívio, que majoritariamente é composto pelas que têm alguns privilégios – umas mais, outras menos, é claro. Entre as vozes que são silenciadas pela ausência deles, estar no mundo como mulher é um risco ainda mais iminente (para não dizer certeiro), mais frequente, uma luta ainda mais árdua, e uma dor ainda mais pungente – não raramente, fatal.

Desde pequenas, somos condicionadas, ensinadas, treinadas a entubarmos as agruras da vida com etiqueta, discrição e educação. Caladas. Culpabilizadas. “Não senta com as pernas abertas”, “Não fala alto”, “Você ri demais”, “Você xinga demais”, “Não liga, homem é assim mesmo”, “Ele te trata mal porque tem uma queda por você”, “Também, ela tava bêbada”, “Também, ela usa saia curta”, “Também, ela tava sozinha”, “Também ela trabalha na noite”, “Ela tava pedindo”, “Boa coisa ela não deve ter feito.” Eu poderia escrever uma edição completa, de A a Z, da Enciclopédia Barsa (denúncia descarada da minha idade), listando mais disparates como estes, que covardemente empregam para que não se use os nomes corretos das violências que vivemos: Abuso. Assédio. Estupro. Agressão. Feminicídio. Silenciamento. (Isso sem falar em desigualdade salarial, alienação parental, hipersexualização, entre tantas, tantas outras mazelas que nos acometem diariamente, por todos os lados).

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Na Teoria da Comunicação, há o conceito de “Espiral do Silêncio”, em que as minorias, quando conflitantes com a opinião majoritária (frequentemente opressora, pelo menos hoje em dia), tendem a se calar por medo de represália, zombaria ou isolamento. Por séculos a fio, nós, mulheres, por medo da morte, da ridicularização, da perda de oportunidades, de todo tipo de violência e na descrença em nossa voz, temos vivido em uma destas espirais. Não mais. Eu gosto sempre de reafirmar, porque as palavras de ordem têm força, o chavão de que “machistas, agressores e feminicidas não passarão”. Mas a infeliz e desoladora verdade é que eles continuam passando, e passarão por muito tempo ainda, não importa o quanto eu e todo mundo (principalmente toda mulher) queiramos ao contrário.

A diferença é que transformamos a “Espiral do Silêncio” num grito gutural, abafado por muitos séculos e que não podia mais ser engolido a seco. Uma montanha russa que vem ecoando e ainda vai reverberar muito. Pouco a pouco, em passos de formiga (mas com muita, muita vontade), começo a vislumbrar um horizonte em que “não passarão” não será um grito de ordem, uma ação afirmativa, mas um real e tangível “não passam”. A cada uma que pega o tíquete e embarca nestes trilhos em que não cabe o silenciamento, ficamos mais fortes. E vamos seguir, cansadas sim, mas gritando contra todo tipo de opressão e violência que acomete a nós e às outras. E vou contar um segredo: a espiral da gritaria, ao contrário da do silêncio, nos torna vez mais fortes. Até o ponto em que seremos indestrutíveis. IN-DES-TRU-TÍ-VEIS.

Se você, mulher que me lê, passa por algum tipo de violência, abuso ou opressão, saiba: você não está e jamais estará sozinha. Gritamos todas, por você. Por todas nós. “Até que todas estejamos livres.” Se é homem e compactua com essa cultura que nos diminui, silencia, viola e mata, se prepare. O barulho está apenas começando. Vamos sim, fazer um escândalo.

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