Pelo inalienável direito à rabugice


Por Júlia Pessôa

20/02/2015 às 07h00- Atualizada 20/02/2015 às 10h31

Desde que aprendi a falar, comecei imediatamente a reclamar. É piada de família e marca registrada da bebê Júlia o “Deixa ela!” que eu fazia questão de esgoelar. Tudo, claro, com devido fundamento. Quando nasci, tinha outros primos, já na casa dos sete anos ou mais, e virei brinquedo em potencial. Quando a garotada enchia o saco, me agarrando, pegando no colo ou fazendo qualquer outra coisa que os bebês despertam em nós, minha resposta era abrir o berreiro, ao que minha mãe dizia aos meninos: “Ô gente, deixa ela!” Quando aprendi o macete, já era! Bastava uma apertadinha inoportuna na bochecha e eu mesma partia em minha defesa: “Deixa eeeeeeeela! Deixa eeeeeeeela!”. Ah, me deixa, gente.

Eu sei, quem só reclama das coisas é um saco. (Taí, mais uma queixa!).  Se tem uma coisa que as redes sociais potencializaram foram os reclamões e borra-regras sobre a vida e o pensamento alheio, sempre em tom acusatório ou professoral, no melhor estilo “eu sei do que estou falando”. Também acho. Mas a patrulha sobre quem se queixa já é grande, neste mundo repleto de #gratidão, #goodvibes, #energizando e outras hashtags que tentam fazer a gente acreditar que a vida é o que se vê no Instagram. Se me permitem dizer, falta espaço para uma certa dose de mau humor, um direito de todos, aquilo que assegura que você não tem que mostrar suas canjicas para todo mundo, muito menos achar tudo #top.

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“Sou muito mal-humorada”, sempre assumo, ao que muitos respondem com certa surpresa: “Ahhhhhhh, não acredito, Júlia!”, como se eu estivesse me autodepreciando. Não, é só um aspecto da minha personalidade, e não é também que eu esteja de ovo virado o tempo todo.  Mas confesso que já me escondi em loja, atendi o telefone e atravessei a rua para fugir de conversinhas inoportunas à beira da calçada.  Acho chato, em níveis idênticos, quem só fala de Big Brother e quem só sabe apontá-lo como escória da cultura brasileira. Ando torcendo o nariz pra quem, frente à vitória da Beija-Flor no carnaval carioca (chocante e lamentável, é verdade), tem dito que o carnaval é corrupto mesmo, “é tudo dinheiro de bandido, então vamos aproveitar.” Mas também já estou de saco cheio que quem fala em impeachment na Sapucaí – e fora dela.

A festa de Momo, aliás, é um tópico especial para minha impaciência, com o pipocar incessante daqueles que jamais ouvem uma batida de tamborim o ano todo e vêm cheios de “Minha Portela”, “Meu Salgueiro” e “Meu/minha [insira aqui sua agremiação]” quando aponta fevereiro. Igualmente, revirei o olho a cada postagem de “todo carnaval tem seu fim” que vi ao término da folia.  Fora do circuito temático, nem me faça começar a falar sobre a piada “é pavê ou ‘pa’ comê?” e suas variações.  Sobre quem insiste em me contar casos compridos e cheios de pessoas desconhecidas. Também fecho a cara quando dou aquela topada com o mindinho no canto do sofá, quando esqueço o celular em casa ou quando não posso atender aos chamados da Santíssima Trindade do azedume:  sono, fome e frio.  A todos estes tópicos, costumo reagir com sorrisinhos amarelos ou uma carranca, mas sempre com  o mesmo efeito involuntário: minhas narinas se dilatam instantaneamente à medida que minha paciência vai se esvaindo. (Pronto, revelei aqui meu segredo maior!). Sou azedinha, admito. Mas reitero aqui que uma das melhores guloseimas da infância de muita gente também o era: azedinho doce, rei dos anos 1980/1990, que deve ter sumido do mercado frente a essa onda exagerada de doçura.

Não precisa perder o dia, atirar as coisas na parede, descontar nos outros, achar que o mundo e a vida são ruins. Mas para uma cultura que valoriza tanto o sorriso nas peças publicitárias, nas redes sociais, na mídia e nos objetivos de vida, acho que ele anda muito banalizado.  Ninguém é feliz o tempo todo, e irrita muito quem se vende assim – adeptos das #goodvibes chamarão de recalque. Rir sem motivo é bom, mas rir de tudo a todo instante não costuma ser sinal de boa coisa.  Os muito simpáticos/felizes/#gratidão que me perdoem: mas rabugice é fundamental.  Dizem, nessas frases de autoajuda por aí, que para franzir a testa, você usa algo em torno de 50 músculos e para dar aquele sorrisão, apenas cerca de 15 deles são exercitados – nunca se acha os números certos, mas a proporção é parecida. Defenderei, enquanto viver, o direito inalienável à rabugice. Nem que seja em prol da tonificação dos músculos faciais.

 

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