Desculpe, mas eu vou chorar


Por Júlia Pessôa

19/12/2014 às 07h00- Atualizada 26/12/2014 às 04h58

Os Natais na minha família são um acontecimento. É a única época do ano em que conseguimos reunir todo mundo, feito que esporadicamente também é atingido com algum aniversário, casamento ou na nossa tradicionalíssima festa junina. Já em meados de novembro, tem sempre alguém que começa a movimentação: “Tem que ver um dia bom para tirar o amigo-oculto”. E nem venham com sugestões de sites e aplicativos que fazem o sorteio pela internet. É tudo no papelzinho, como manda o fiugurino, com a tática infalível de pedir à faxineira, ao porteiro, ao motoboy que foi entregar alguma coisa, ou mesmo a uma visita de passagem para ler o sorteado de quem mora longe ao telefone. Ah, as tradições familiares!

O furdúncio começa muito cedo na cozinha, onde minha mãe e minha tia Tchatcha produzem comida de lamber os beiços em escala industrial, deixando o recinto só lá pras dez da noite. A Tchatcha, que na realidade se chama Sônia e tem um daqueles apelidos que pegam sabe-se lá por qual motivo, é um exemplar que toda família deveria ter. Foi e é mãe de todos os dez sobrinhos – talento agora estendido aos sobrenhos-netos – , das fraldas às mudanças de apartamento, do primeiro banho aos braços sempre abertos de que a gente sempre precisa, não importa o quão adulto (pense que) seja.

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Desde a minha lembrança mais remota do Natal, quando enfim chega a meia-noite e fazemos um rodízio de abraços e beijos até que todos tenham se saudado, lembro-me da Tchatcha sempre com os olhos marejados e cara de choro. Quando era criança, achava que podia ser de fome, esperando as doze badaladas para comer, ou porque tinha dado uma espiada debaixo da árvore de Natal e não tinha encontrado presentes com seu nome, ou qualquer coisa que justificasse o pranto na época em que acreditamos que só se chora de tristeza nessa vida. Mesmo quando era mais velha, entendia que as lágrimas eram de emoção, e coisa e tal, mas sempre, sempre ficava intrigada. Só burra velha fui compreender a dimensão das lágrimas da Tchatcha.

O intervalo entre um Natal e outro passa cada vez mais rápido e mais rasteiro. Nossas crianças crescem depressa demais, nossos trabalhos nos consomem demais e nossos sonhos são adiados demais. Falta tempo para encontrar aquele amigo de tantos anos, para fazer a prometida visita aos avós – quando ainda os temos – e para ver a estreia do último filme de nosso diretor preferido no cinema. “Depois eu baixo”, pensamos. Os dias passam, o ano acaba, a vida passa e o download fica para trás. Não nos permitimos.  Perdemos o filme. Nossos avós seguem a esperar com a mesa posta para café da tarde. E o amigo de longa data parou de ligar há meses. “Fica pra outra”. Outra vida?

É tudo tão corrido que deixamos mesmo de dedicar às nossas emoções o devido tempo que elas merecem. Deixamos de chorar de emoção, alegria, tristeza, de ódio ou do que quer que seja porque a vida não para para que enxguemos as lágrimas e sigamos em frente. Engolimos o choro e o tocamos barco, ainda que com o timoneiro em frangalhos. O ano que corre entre natais é muito pouco para o tanto de vida que se passa nele. O que não cabe nos dias e extrapola a conta, seja bom ou ruim, acaba transbordando pelos olhos quando baixamos a guarda, quando saímos do modo acelerado, quando deixamos o casulo da escassez de tempo. E é por isso que a Tchatcha chora no Natal, e não em qualquer outro dia.

Quando eu voltar a escrever esta coluna, já estaremos em 2015 (Voou sim, eu sei). Mas antes disso, na noite do dia 24, quando meu olhar cruzar o da Tchatcha à mesa da ceia – talvez entre o peru e as rabanadas – estarei, sem qualquer dúvida, com os olhos igualmente marejados.

Feliz Natal, e um embrulho cheio de tempo para todos nós.

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