Agora, vai


Por Júlia Pessôa

19/03/2017 às 07h00- Atualizada 20/03/2017 às 09h18

Naquele dia, ela não quis tomar o costumeiro café preto. Tinha leite fresquinho na geladeira e um Nescau sabe-se lá de quando, mas pensou que talvez não tomasse Nescau desde a adolescência, e por que não fazer a manhã mais doce. “A vida é feita também destes pequenos prazeres bobos”, pensou. E era mesmo. Lembrou-se das notícias de internet de que nenhum adulto precisa de leite, e das outras falando de osteoporose, cálcio e o diabo a quatro, mas, naquele momento em que o sol ia se convidando para a pontinha da mesa da cozinha, só pensava no quanto aquilo estava bom. Mas que Toddy também era. “A única pena é não ter Ovomaltine”, lamentou-se um tiquinho.

Saiu pra trabalhar e tudo fluiu bem como há muito tempo não acontecia. Pode ser porque estava de muito bom humor, era sexta, e as sextas fazem isso com as pessoas mesmo. Mas tudo estava especialmente mais fácil, mais leve, menos com cara da dureza que vai se aplacando naturalmente sobre a rotina e a gente nem percebe. Saiu ainda era dia e trombou com um amigo que tinha caído naquele limbo do “Vamos marcar”, “Mas vamos mesmo”, “Olha, me liga hein!”, sem nunca ser promovido, nos últimos tempos, a mais do que seu avatar redondinho do WhatsApp, ou uma curtida em qualquer outra rede social que tenha devolvido o verbo aos nossos vocabulários. Foram tomar um prometido e adiado chope.

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Relembraram os “velhos tempos”, que nem tão velhos eram; sobre o que andam fazendo e o que pretendiam fazer; sobre as barras que passaram sozinhos e , “Porra, mas por que você não me ligou?”; sobre gente querida e sumida; sobre gente babaca que continua babaca. Falaram-se. Riram até não poder mais. Cumprimentaram conhecidos. Comentaram a roupa de estranhos, brigaram pra ver quem pagava a conta. Ela venceu. “Deixa eu pagar, tô tão feliz hoje…” Pagou. Despediram-se com um abraço curto, mas apertado, com promessas de um novo encontro sob o selo do “Agora, vai”. Tinha tudo pra ir, mesmo.

Foi pra casa e já altinha dos muitos chopes, dormiu logo, ainda com um sorriso besta de um dia tão banal e tão bom. “A vida é tão curta, a gente devia se permitir essas felicidades idiotas mais vezes”, pensou – talvez até tenha falado alto – e adormeceu ainda terminando de completar o raciocínio clichê.

Acordou em um sábado cinzento, de ressaca, com o telefone tocando. “Lá vem essa mala me ligar”, disse rabugenta sobre a ligação – que não atendeu – de uma amiga. Não era só a dor de cabeça, nem só a manhã nublado, nem a cara de ontem ainda meio maquiada. Parecia mesmo que o sábado ia ser ruim. Abriu a despensa e matou o pressentimento, com ares de perita forense. Não tinha mais Nescau.

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